A Herança Tântrica na Tradição Textual do Haṭha Clássico

Em que momento poderá ter ocorrido a “transição” do Tantra ao Haṭha? Obviamente estes fenómenos raramente são lineares, não se podendo circunscrever a um ponto específico, sendo antes transicionais. Nesse sentido, podemos identificar intervalos evolutivos. No caso concreto, dir-se-ia que a compreensão pode advir começando por configurar o próprio movimento evolutivo do Śaivismo e Tantra.

Esquema 1 – Evolução Histórica do Śaivismo e Tantra (1).

Podemos rever esse processo, brevemente e à luz de Sanderson e Flood (2). Depois de um proto-Śaivismo, primeiro numa associação altamente especulativa à figura do Selo de Paśupati a um percursor de Śiva, depois numa adoração primitiva a Rudra, o percursor Védico de Śiva, o Śaivismo começará no intervalo entre os séculos II a.C. e I d.C.

Haveria um primeiro Śaivismo, denominado Purânico, na medida em que ocorria dentro da ortodoxia e ortopraxia Védicas: desenvolve essencialmente no espaço do templo, é ritual e executado pelos denominados maheśvara-s, brâmanes que usavam de mantra-s védicos, fundamentalmente para agrado da deidade. A certa altura, desenvolve-se um Śaivismo não-Purânico, iniciático no âmbito de uma relação perceptor-discípulo e interessado na aquisição de super-poderes a par da Libertação, que se vai ramificando ao longos dos séculos, num processo que se distância cada vez dos valores védicos, fundindo-se a (ou recuperando) toda uma série de elementos forâneas a essa elite social e cultural Hindu: concretamente, a elementos xamânicos, práticas de ascetismo, cultos aborígenes matriarcais, e processos alquímicos. Esta é uma ideia fundamental a reter, na medida em que marca a tónica de todo o processo de desenvolvimento do Śaivismo, desde o seu início ao seu apogeu: no sentido de uma afastamento dos ideais e costumes védicos e da integração de aspectos forasteiros e antinomianos na sua relação com os anteriores; há quem fale (3) também do afastamento de uma ontologia dualista em relação a uma monista, o que já não é tão consensual.

O Śaivismo não-Purânico começa por se ramificar em duas vias principais: Atimārga, a Via Superior, e Mantramārga, a Via do Mantra. A primeira Via inaugura com os Pāśupata-s, gerando os Kālāmukha-s e Lākula-s, brâmanes renunciantes que assumem um comportamento antinomiano, visavam chocar a instituição social e cultural dominante, ainda assim, conservando vários elementos do cânone védico nas suas práticas e conceções. A segunda Via, cuja origem deve estar igualmente nos Pāśupata-s, dá origem ao Śaiva Siddhanta e ao Śaivismo Kāpālika; do primeiro para o último “sistema” há um maior afastamento dos valores védicos, volte a sublinhar-se. Os Kāpālika-s, e mais tarde também os Aghorī-s, eram os ascetas “portadores de caveiras” e “terríveis” que viviam em terreiros de cremação e que, a partir de certa altura, enveredaram por práticas transgressivas: exorcismo e bruxaria; ingestão de drogas e álcool; consumo de carne, muitas vezes humana; ritos escatológicos e sexuais. É também com estes ascetas que se desenvolvem (ou recuperam, depende da perspectiva (4)) os cultos à Deusa e às inúmeras figuras das deusas (ou yoginī-s) do panteão hindu.

Do Śaivismo Kāpālika surge o Kaulismo, caracterizado pelos seus principais quatro sistemas, denominados Transmissões (āmnāya) ou Ramos (ghārāmnāya).
1. Kaula Trika: A Transmissão do Este (Pūrvāmnāya);
2. Culto Kaula de Kālī: Mata, Krama e a Transmissão do Norte (Uttāmnāya);
3. Culto Kaula de Kubjikā: A Transmissão do Oeste (Paścimāmnāya);
4. Culto de Tripurasundarī e A Transmissão do Sul (Dakṣiṇāmnāya)

O Kaulismo leva a outro nível, primeiro a fim da exclusividade dos ritos a renunciantes, admitindo-os aos chefes-de-família, segundo o mergulho no matriarcalismo que culmina com o Śākta em todo o seu fulgor. É daqui que surgem os cultos e práticas sexuais que vieram mais tarde a dar “fama” ao Tantra e, eventualmente, a contribuir para o seu declínio no seio da conservadora elite social Hindu (5). Outro aspecto, provavelmente até mais importante no decline do Tantra, segundo David Gordon White (6), veio com o Kaula Trika, de onde se originou a Doutrina da Vibração (Spanda) e do Reconhecimento (Prtyabhijñā), onde o Tantra é complexificado e elitizado a um nível tal, que culmina num desinteresse da parte da massa crítica de adeptos e proponentes (a juntar a este “entrave”, um outro, o da questão da iniciação obrigatória, circunscrita ao espaço do grupo ou seita em questão). Isto abriu as portas ao “intercâmbio” entre os adeptos tântricos populares, particularmente do Cultos Kaula a Kubjikā e Tripurasundarī, e praticantes de Haṭha percursor, gerando-se daí o processo de formação do Haṭha Clássico.

Este processo fica patente, numa análise da Tradição textual do Haṭha, ao verificar-se que (na generalidade) essa numa primeira fase, deriva da tradição textual tântrica, numa segunda fase se entrelaça com ela e numa terceira fase se emancipa. Isto pode ser observado se circunscrevermos a cronologia textual de Mallinson as tradições do Tantra e do Haṭha.

Quadro 1 - Linha Cronológica de Textos Importantes de Tantra e Haṭha (7).

De resto, literalmente, há textos de Tantra que são “transformados” em textos de Haṭha: a transformação do Kubjikāmata no Vivekamārtaṇḍa é um exemplo a favor desta tese.

Em suma, a história repete-se. Novamente, surgindo um processo de complexificação e elitização ad nauseum, de uma soteriologia dominante (8), há uma derivação e pensa-se, ou pelo menos alguns pensam, que é deste desvio que terá “surgido” o Haṭha, sendo o pináculo do movimento o estabelecimento do Haṭhapradīpikā como texto canónico, algo que claramente fica patente no śloka I:3 (9),

भ्रान्त्या बहुमत-ध्वान्ते राज-योगमजानताम् । हठ-प्रदीपिकां धत्ते स्वात्मारामः कृपाकरः ॥ ३॥

bhrāntyā bahumatadhvānte rājayogamajānatām / haṭhapradīpikāṃ dhatte svātmārāmaḥ kṛpākaraḥ //3//

3 – Para aqueles que divagam na escuridão de doutrinas inconsistentes, e desconhecem o Rāja Yoga, o compassivo Yogin Svātmārāma concede a luz do Haṭha-vidyā.

Faltará, com certeza, mencionar a papel do Tantra Vaiṣṇava, na sua forma Pāñcarātra, em todo este processo de influência sobre a formação do Haṭha. Ficará somente a menção, referindo que estando ligado às elites de ascendência bramânica, este sector do Hinduísmo Devocional teve um profundo papel no desenvolvimento do Haṭha, estando por exemplo ligado à proliferação de āsana-s não-sentadas e mais complexas (10).

Finalizando, numa cronologia geral por tão difícil de delimitar, hipoteticamente, teremos todo este processo a decorrer na seguinte sequência:
Śaiva e Tantra, do final do primeiro Milénio ao séc. XVIII;
Haṭha pré-Clássico, do séc. X até ao séc. XV;
Haṭha Clássico de Svātmārama, séc. XV:
Após a síntese de Svātmārama, surge o Haṭha pós-Clássico, até ao séc. XIX, tradicionalmente marcado pela contextualização ou inclusão (há quem prefira o termo “apropriação”(11)) Vedānta de elementos do Haṭha, culminado na redacção das chamadas Yoga Upaniṣad-s (12).
Ultimamente, Haṭha Moderno (Iyengar) / Yoga moderno Postural de DeMichelis [séc. XX e XXI]



Joel Machado



Notas
(1) Adaptado de Gavin Flood, The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion, 2006.
(2) Alexis Sanderson, Śaivism and the Tantric Traditions, 1988; Gavin Flood, The Tantric Body. The
(3) Gavin Flood, The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion, 2006.
(4) Mircea Eliade, Yoga Immortality and Freedom, 1958.
(5) Muitas vezes fala-se em Tantra de Lado Esquerdo e Tantra de Lado Direito, por um lado o primeiro aplicava literalmente o que o segundo aplicava figurativa e simbolicamente; também há quem divida isto em termos de afastamento dos valores védicos, o Lado Direito o que está de acordo com os valores védicos e Lado Esquerdo o que se afasta (Flood, 2006)
(6) The Alchemical Body, 1996.
(7) Adaptado da “Linha Cronológica de Textos Importantes”, de James Mallinson e Mark Singleton, Roots of Yoga, 2017.
(8) Já havia ocorrido antes, por exemplo, aquando do nascimento e proliferação do Hinduísmo Devocional, tal como é apontado por Eliade e Feuerstein.
(9) Tradução de http://mokshadharma.blogspot.pt/: स्वात्मारामः (svātmārāmaḥ); आकर (ākaraḥ) irradia; कृपा (kṛpā) compaixão; धत्ते (dhatte) concede; हठ-प्रदीपिकां (haṭhapradīpikām) a luz do Haṭha-vidyā; अजानताम् (ajānatām) [para aqueles] que não sabem; राज-योगम (rājayogam); भ्रान्त्या (bhrāntyā) devido à ilusão; ध्वान्ते (dhvānte) [vinda] da escuridão; बहुमत (bahu-mata) e por muitas ideias. (Fonte da tradução: ?????? )
(10) James Mallinson & Mark Singleton, Roots of Yoga, 2017; James Mallinson, Haṭha Yoga, 2011.
(11) James Mallinson, Haṭhayoga’s Philosophy: A Fortuitous Union of Non-Dualities, 2014.
(12) Christian Bouy, Les Nāth-Yogin et Les Upaniṣads, 1994



Bibliografia

Bouy, Christian (1994) Les Nāth-Yogin et Les Upaniṣads, Diffusion de Boccard, Paris.

Eliade, Mircea(1958) Yoga, Immortality and Freedom.New York. Princeton University Press.

Feuerstein, Georg(1998). The Yoga Tradition. Its History, Literature, Philosophy and Practice. Chino Valley, Arizona. Hohm Press.

Flood,Gavin(2006)The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion. London –New York. I. B. Tauris.

Mallinson, James (2011)5,000-word Entry on “Haṭha Yoga” in the Brill Encyclopedia of HinduismVol. 3 (pp. 770-781). Leiden: Brill.

Mallinson, James (2014)“Haṭhayoga’s Philosophy: A Fortuitous Union of Non-Dualities”, pp. 225-247 in Journal of Indian Philosophyvolume 42, issue 1.

Mallinson, James & Singleton, Mark [Trad. e Ed.] (2017) Roots of Yoga. London. Pinguin Clássics.

Sanderson,Alexis(1998)“Śaivism and the Tantric Traditions.”In The World’s Religions, edited by S. Sutherland, L. Houlden, P. Clarke and F. Hardy. London: Routledge and Kegan Paul, pp. 660–704. Reprinted in The World’s Religions: The Religions of Asia, edited by F. Hardy. London: Routledge and Kegan Paul (1990), pp. 128–72.

White, David Gordon (1996) The Alchemical Body.Siddha Traditions in Medieval India.Chicago –London.The University of Chicago Press.