Cunhada por B. Alan Wallace, Ciência Contemplativa é uma expressão que tudo terá para se institucionalizar (no melhor sentido) nos anos vindouros. Porém, como defini-la? Uma maneira ilustrativa será por comparação à Ciência Objectiva ou Experimental.
Ouvimos falar frequentemente de Ciência Experimental, ou simplesmente Ciência (do Latim, scientia, em português “conhecimento”). Definimo-la como o sistema global de conhecimento adquirido, construído ou organizado, através do Método Científico e objectivamente testável. Normalmente distinguimos entre Ciências Básicas e Aplicadas que, por sua vez, podem ser Formais (Matemática, Estatística, Lógica, Computação, etc.), Naturais (Física, Química, Biologia, Engenharia, Medicina, etc.) e Sociais (Antropologia, Sociologia, Psicologia, Direito, Pedagogia, etc.). Com maior ou menor exactidão, todas devem “produzir” conhecimento verificável, relativo ao mundo material, usando a metodologia científica formal (Problema, Pesquisa, Hipotetização, Experimentação, Análise, Interpretação, Divulgação e Replicação). Assim, o termo motriz da Ciência Experimental é a objectividade, por mais falacioso que possa ou não instituir-se.
Ora, a Ciência Contemplativa tal como a Experimental, compreende um corpo teórico e prático, porém, tem uma relação totalmente diferente com o binómio objectividade-subjectividade. Como? Na medida em que tentando ser o mais objectiva possível, não “foge” no entanto da subjectividade, pelo contrário, integra-a. De outro modo não poderia ser, já que o seu objecto será a consciência (individual, colectiva e universal). Pretendendo obter o conhecimento igualmente por teste e via empírica, e tendo um tronco-comum estruturador, a Ciência Contemplativa está sujeita à variação cultural. Que quer isto dizer? A Matemática é Matemática, seja em Portugal ou no Vietname. O mesmo com a Medicina, Sociologia ou Biologia, mesmo que verifiquemos ligeiras variações culturais. Na Ciência Contemplativa isso não ocorre, consoante a cultura e respectivo período temporal as diferenças manifestas podem ser acentuadas, independentemente do facto do tronco-comum se manter relativamente inalterável. A Mística Cristã e o Bhakti Yoga constituirão um bom exemplo, dado que apresentando-se de modo visivelmente diferente, no fundo, são intrinsecamente gemelares, manifestando-se isso na paridade teórica e metodológica com que abordam o seu objectivo.
O Haṭhayoga, na sua formulação Clássica, pode ilustrar paradigmaticamente o que é uma Ciência Contemplativa. Epitomizada pelo tratado Haṭhapradīpikā, há uma tradição textual que sistematiza um conjunto de princípios teóricos e práticos. Teoricamente, defendem-se os pressupostos fundamentais de conservar o bindu ou elevar a kuṇḍalinī, harmonizando a triangulação entre mente-respiração-vitalidade. Isto para cumprir o objectivo de conquistar siddhi-s, as potências suprahumanas, e atingir mukti ou samādhi, o estado supracognitivo, ulterior à percepção errónea de que se existe separadamente do entorno universal. A proposta prática passa pela integração de técnicas enquadradas em três abordagens interligadas, mecânica, pneumática e meditativa, aplicadas mediante uma preparação prévia. Esta preparação implica a purificação física e psicológica, levada a cabo mediante uma série de acções de limpeza (kriyā-s), a adopção de uma dieta adequada (mitāhāra) e assumir uma conduta ética e observante irrepreensível (yamanyama). Tecnicamente, a abordagem mecânica implica o exercício de posturas corporais (āsana) e gestos diafragmáticos (mudrā e bandha); a abordagem pneumática implica a prática de técnicas respiratórias (prāṇāyāma); a abordagem meditativa implica a aplicação de várias técnicas de meditação e visualização (pratyāhāra, dhyāna, samādhi, layayoga, nādayoga, mantrayoga).
Deste ponto em diante, como abordar a ideia de tronco-comum na Ciência Contemplativa? Diríamos que esse tronco-comum existe na medida em que, aparentemente, todas as ciências contemplativas, do Haṭha ao Hesicasmo, organizam-se a partir de um conjunto de pressupostos metafísicos, teóricos e de técnicas similares.
O pressuposto metafisico e teórico é o de que a experiência não se esgota naquilo que os sentidos grosseiros e mentais apreendem, ou seja, na percepção de individualidade ou sentimento de si. Pelo contrário, vai muito além desse estar psicológico e existencial que será em essência ilusório, uma criação do ego. Do Vedānta ao Budismo Tibetano, existem inúmeras teorias que podem ilustrar essa hipótese. Analogamente, existem variados corpos de praxis que oferecem tecnologia contemplativa para abordar a questão de partida. Vejamos o exemplo das técnicas respiratórias e posturas físicas que ocorrem no Yoga e Xamanismo. O conhecimento adquirido (ou resgatado) é subjectivamente enquadrado, transmitindo-se idealmente através de uma linguagem simbólica por se reconhecer que não se compadece com a dita objectividade e, em última análise, através do silêncio inerente à Presença Contemplativa.
Em suma, a ideia de Ciência Contemplativa pode ser fundamental para a Civilização se; por um lado, for assumida genericamente, ou seja, à revelia de enforme cultural, social ou sectário, isto é, ortodoxias de todas as formas e feitios; por outro, se ao invés de “concorrer” com a Ciência Experimental, se aliar a essa, dentro da razoabilidade. Posto isto, há ainda muito que investigar, “concluir” e partilhar, acerca da Ciência Contemplativa como um todo genérico.
Joel Machado
(Contemplando | Foto/Créditos: FF)
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