Há a ideia comum de que que se pratica Yoga em escola, estúdio ou ginásio, durante duas ou três das 168 horas semanais. Esta deve ser uma das maiores falácias das interpretações actuais do Yoga.
Acende-se o incenso exótico. Estende-se o tapete bio, repete-se ‘Sūryanamaskāra’ um número de vezes, executam-se ‘āsana-s’ em permanência acompanhadas de sons estranhos e nasalados. Repete-se o mantra da felicidade ‘n’ vezes. Faz-se a meditação dos cakra-s. Termina-se em posição deitada, com o relaxamento final, passando pelas brasas durante escassos minutos. Sai-se nas nuvens, com a sensação convincente de se estar num estado de calma e paz. No carro, bastam dois sinais vermelhos e desponta a impaciência. Uma manobra perigosa à frente, o primeiro chorrilho de palavrões. Em chegando a casa, grita selvaticamente com os filhos que já deviam estar deitados, pede satisfações ao marido por ter ficado a ver futebol. Algumas implicações e beligerâncias depois, deita-se angustiada por antecipação, pois o fim-de-semana será passado em casa dos pais, detestáveis. Adormece um sono inquieto, prelibando a reunião familiar com sonhos de discussões. Onde já vai o Yoga…
A prática de Yoga não acontece isolada no espaço e no tempo, ela é contínua. Não é controlável, navegamos com ela ou não, como quem tem a graciosidade ou a quietude de saber vogar com as correntes marítimas. A ideia proliferada de que “vou ao estúdio e encontro uma hora de paz” é a antítese do Yoga! É um engodo do ego na medida em que se cria um compartimento isolado, dedicado a uma pseudo-prática do Yoga, fomentando a separação do mundo ao redor, negativamente percepcionado! Alimentar a crença de nos sentirmos bem somente mediante determinadas variáveis, é substituir uma narrativa do ego por outra que, naturalmente, durará conforme um prazo de validade.
O tipo de prática em que tradicionalmente nos envolvemos é paradigmático deste equívoco, essencialmente focado em posturas físicas e visualizações. Quanto às āsana-s, hoje em dia, a maioria delas se não for inútil andará lá perto. Pior, muitas serão extremamente lesivas. Ter flexibilidade lombar ou abertura pélvica não prepara alguém para a vida quotidiana, talvez tonifique o corpo. Possuir endurance para executar a sequência total de um estilo vinyāsa não fará de alguém um yogin, porventura um atleta em calisténicos e isométricos. O mesmo com as meditações guiadas, onde se chama uma divindade tutelar, se perdoa um algoz de estimação ou se limpa o coração. Quando muito, serão ensaios para aplicar na vida real. O que preparará a pessoa para os dilemas existências, fazendo dela um yogin, será o exercício da concentração e meditação, numa base contínua sobre pressupostos éticos e disciplina. Trocado em miúdos, é chegar ao trabalho e observar ao ódio sentido pelo colega carreirista e viperino que nos tenta “fazer a folha”, não sucumbindo. É tolerar a mãe por, mais uma vez, criticar em nós aquilo que ela não conseguiu fazer melhor na sua vida. É não descarregar nos filhos exactamente o mesmo que o pai descarregou em nós. A lista prosseguiria…
Não quer dizer que uma pessoa não encontre alívio numa prática de uma hora legítima e bem conduzida. Porém, “alívio” é diferente de “consciência”. Talvez numa primeira fase o Yoga possa proporcionar alívio, mas o seu elixir é a possibilidade de discernimento e consciência. A Liberdade virá precisamente disso. Ficar pelo alívio é quedar-se pela superficialidade, é não mergulhar no Yoga.
Posturas de yoga, exercícios de respiração, purgas fisiológicas, jejuns, per se, não fazem de alguém uma pessoa espiritual. Não “limpam” karma, não nos tornam “gente boa”! Com efeito, alguém “será” espiritual quando renuncia à contínua identificação com as narrativas do ego e recusa as suas exigências. Renunciar à vida sob a égide do princípio do prazer, certamente tornará a pessoa mais livre do que se executar uma Sarvāngāsana (Invertida-sobre-os-Ombros) posturalmente “perfeita”. Substituir na prática um referencial de competição por outro de cooperação, fomentará muito mais a empatia e compaixão do que entoar o mantra Oṃ. Voluntariado abnegado, recolher plástico no mar, plantar árvores, apoiar programas de biodiversidade, são acções potencialmente mais yoguicas do que participar euforicamente numa roda de canto, kīrtana, numa língua cultural e milenarmente distante e cujo significado se desconhece.
Acima de tudo, é no contínuo da vida que se pratica, na vigília e, em ultima análise, no sono. Isso faz do estúdio e do āśrama “meros” laboratórios onde vamos buscar instrumentos, onde treinamos num ambiente controlado o que depois será aplicada na espontaneidade do devir, sem estar sobre o nosso controlo. Este pressuposto fará do Yoga uma Ciência Contemplativa.
Será?
Joel Machado
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