Āsana enquanto postura sentada
Etimologicamente āsana está para “assento”, “sentar” ou “estar em posição sentada”, portanto, nos textos percursores de Yoga a palavra āsana remetia para isso mesmo: um assento ou modo de sentar. Só posteriormente (estamos a falar de séculos) veio a referir-se a qualquer postura corporal e inclusive a movimentos físicos dinamicamente repetidos. Assume-se frequentemente que a utilização do termos se tenha “institucionalizado” com a redacção do Yoga Sūtra-s, de Patañjali, onde a ideia de āsana remete para “postura estável” (1). Contudo, a associação de posturas específicas à prática de Yoga e Meditação não foi uma inovação do Patañjalayogaśātra. Inúmeras esculturas representam posições sentadas para meditar, em particular a postura do lótus (padmāsana), que eram correntes na Índia muito antes da sua composição (2). Os textos do Cânone Pali Budista, frequentemente, instruem o meditante a sentar-se com pernas cruzadas antes de iniciar a sua prática e, sabe-se também, posturas meditativas similares foram ensinadas em trabalhos precursores da Tradição Jaina. A segunda metade do primeiro milénio conheceu a composição de inúmeros textos tântricos, que numa fase inicial dão pouca importância a āsana, porém, gradualmente vão-se referindo a posturas sentada, simples, para a prática de meditação, mantra e prāṇāyāma (3). É com o advento do Haṭha que a prática de āsana se institucionaliza, por assim dizer, passando de “meras” posições sentadas a posturas físicas mais complexas.
Āsana enquanto postura não sentada
Apesar de não se ensinarem posturas não-sentadas em textos de Yoga, pelo menos, até ao fim do primeiro milénio da era de Cristo, os ascetas indianos já as usavam nessa altura há cerca de 2500 anos. Com efeito, tendo vivido pelo menos cem anos antes da chegada de Alexandre, o Grande, à Índia e, de acordo com o cânone Pali, o Buda comungou com ascetas que praticavam uma variedade de austeridades, incluindo posturas mais complexas e inversões, que se coadunavam com práticas de auto-mortificação. Isso tornava este conjunto de práticas físicas, extremamente inacessíveis “ao comum dos mortais”, ou seja, a todos os que não fossem renunciantes extremistas. É com o Yogaśāstra de Hemacandra (4) e os textos do corpus do Haṭhayoga, que se adaptam, a uma audiência não-ascética, técnicas físicas desenvolvidas dentro de uma tradição ascética – entre estas contam-se posturas físicas não-sentadas, pela primeira vez denominadas āsana-s (5).
Segundo James Mallinson e Mark Singleton (6), no corpo do Haṭha, ensinam-se posturas físicas complicadas, pela primeira vez, no conjunto de técnicas proposto pelo Haṭhapradīpikā. Porém, a primeira referência textual a āsana-s não-sentados ocorrem no Vimānārcanakalpa (7), um texto Pāñcarātra datado cerca do séc. X, parecendo que a prática de āsana-s não-sentados se terá desenvolvido no milieu Pāñcarātrika. O Matsyendrasamhitā do séc. XIII, é o texto mais antigo da tradição Nāth a ensinar uma variedade de 13 āsana-s sentadas, incluindo três cunhadas com base em animais: mayūrāsana (pavão), kukkuṭāsana (galo), kūrmāsana (tartaruga). Āsana-s com este nome são ensinadas em trabalhos Vaiṣṇava tais como o Vimānārcanakalpa, o Ahirbudhnyāsamhitā e o Vasiṣṭhasamhitā, contudo são posturas não-sentadas, muito diferentes dos seus homónimas no Matsyendrasamhitā. A utilização do temo āsana para descrever qualquer tipo de postura física parece ter-se tornado espalhada por volta do séc. XIV, quando o Rasaratnākara Maithili o usou juntamente com o termo bandha como termo para descrever posições de intercurso sexual. O Dattātreyayogaśastra e o Vivekamārtaṇḍa ambos falam em 84 lākh āsana-s, mas o primeiro só ensina padmāsana à qual o segundo acrescenta siddhāsana. É o Haṭhapradīpikā a abrir precedente, ensinado 15 āsana-s, dos quais sete são posturas sentadas, marcando o início da proliferação da importância de tais posturas na prática de Yoga.
Quadro – Posturas ou āsana-s apresentadas no Haṭhapradīpikā (I:19-58).
É também no Haṭhapradīpikā que algumas práticas que não eram concebidas como āsana-s, passam a ser concebias sob essa rubrica. Assim, Śavāsana, “a postura do cadáver”, que é ensinada como um dos métodos de layayoga no Dattātreyayogaśastra, torna-se uma āsana no Haṭhapradīpikā. O Haṭharatnāvalī do séc. XVII é o primeiro a ensinar 84 āsana-s individuais e o Jogapradīpakā ocorre numa versão onde se ilustram esse conjunto mitológico de āsana-s, algumas associadas a mudrā-s e bandha-s.
Sobre o propósito da prática de Āsana
No contexto histórico e geral do Haṭha, apontam-se as seguintes razões para se praticar āsana: até à composição dos textos mais antigos de Haṭha, nos primeiros séculos do Segundo Milénio da Era de Cristo, os ascetas praticavam posturas físicas para estabelecer uma base firme à retenção e controlo da respiração, à repetição de mantra e à meditação, e também como meio de cessar o karma e adquirir tapas, o “poder ascético”, no sentido de purificar o antigo karma e auferir superpoderes; com o advento do corpus do Haṭha adicionaram-se benefícios fisiológicos e terapêuticos à prática de āsana – benefícios que variam bastante e consoante os textos e suas agendas.
Proliferação da prática de Āsana
Assim, a prática de āsana, tendo começado em “meras” posturas sentadas que visavam essencialmente a prática meditativa e respiratória, assume uma miríade de formas que estabelecem com complexidade e por vezes em sequências (8).
Em suma, a proliferação e triunfo de āsana terá começado então com o Haṭha e exponencializa-se no final do séc. XX e entrada do séc. XXI, por acção de T. Kṛṣṇamācārya e seus discípulos mais populares, como Pattabi Jois e B.K.S. Iyengar, dando-se a massificação do chamado “Yoga Postural Moderno”, um cunho de Elizabeh DeMichellis (9). Pelo meio de todo este processo, pensa-se que a reinterpretação do conceito e prática de āsana, no contexto do Yoga, tenha acontecido sob a égide uma variedade de influências, entre os quais, seminalmente destacadas por Mark Singleton (10): karaṇa-s, práticas físicas ensinadas nos Tantra-s Śaiva-s, que são similares aos mudrā-s do Haṭha Yoga; mudrā-s do Haṭha; mortificações ascéticas; práticas Sufi; técnicas de luta livre; exercícios de bobybuilding e ginástica Ocidentais.
Joel Machado
Notas
(1) No comentário (bhāṣya) mais célebre ao Patañjalayogaśātra, são apontadas 12 posturas; em todo o caso, olhando apenas para os Sūtra-s, āsana surge associada à ideia de estabilidade postural para prática de prāṇāyāma.
(2) Com efeito, crê-se que estas posturas poderão ter derivado de práticas ancestrais xamânicas; a este propósito ver, por exemplo, o trabalho da antropóloga Felicitas Goodman, Ecstatic Body Postures: An Alternate Reality Workbook.
(3) Por exemplo, no Niśvāsattavasaṃhitā Nayasūtra, ocorre o ensinamento mais antigo do Tantra sobre āsana, apresentando-se uma postura sentada, auxiliada por um cinto (yogapaṭṭa), de maneira a manter conforto e estabilidade; no milieu tântrico, em determinados círculos, a palavra āsana, também se terá referido a posições sexuais.
(4) O Yogaśāstra ("Tratado de Yoga " ou “Disciplina do Yoga”) é um trabalho sânscrito sobre prática de Yoga e filosofia Jaina, com influência Tântrica e Budista, redigido por Hemachandra (cerca de séc. XII). Grosso modo, o texto fomenta várias formas de Yoga Jaina num esquema de oito aṅga-s, similar ao de Patañjali, com base na filosofia e ética do Jainismo. Hemachandra discute tópicos como prāṇāyāma, āsana, nāḍī-s, adivinhação, dhyāna e outras formas de meditação Jaina e Tântrica.
(5) Não se poderia esperar que praticantes não-renunciantes, como chefes-de-família, levassem a cabo as mortificações físicas extremas praticadas por ascetas, deuses e monarcas da mitologia, porém, podiam tentar imitá-los com alternativas apaniguadas; assim, por exemplo, o kāyotsargāsana ou “postura-de-sair-do-corpo”, ensinada por Hemacandra, deixa de requerer que seja feita até à morte mas simplesmente passa a ser executada segundo kāyānāpekṣam, isto é, “com desprezo pelo corpo”.
(6) Roots of Yoga, 2017.
(7) Apesar do Vimānārcanākalpa ser o ensinamento mais antigo sobre uma postura são-sentada, diz que essa é a menos importante de todas.
(8) Segundo James Mallinson e Mark Singleton (2017), sequências complexas de āsana-s não são ensinadas em nenhum texto indiano pré-moderno, apenas por volta do séc. XVIII alguns textos a começam ensinar movimentos físicos, repetidos; segundo os mesmo autores, a própria utilização do termo vinyāsa, pelo menos em textos pré-modernos, nunca remete para a ideia de movimento sequenciado, contrariando o modo como ficou popularizado no espaço da prática influenciada por T. Kṛṣṇamācārya.
(9) A History of Modern Yoga, 2004.
(10) Yoga Body, 2010.
Bibliografia
Birch, Jason (2011) The Meaning of haṭha in Early Haṭhayoga. Journal of the American Oriental Society, 131 (4). pp. 527-554.
Birch, Jason (2015) The Yogatārāvalī and the Hidden History of Yoga. Nāmarūpa, Issue 20 (Spring 2015).
Bouy, Christian (1994) Les Nātha-Yogin Et Les Upaniṣads. Paris. Diffusion de Boccard.
De Michelis, Elizabeth (2005) A History of Modern Yoga: Patanjali and Western Esotericism. London – New York. Continuum.
Eliade, Mircea (1958) Yoga, Immortality and Freedom. New York. Princeton University Press.
Feuerstein, Georg (1998). The Yoga Tradition. Its History, Literature, Philosophy and Practice. Chino Valley, Arizona. Hohm Press.
Mallinson, James (2011) 5,000-word Entry on “Haṭha Yoga” in the Brill Encyclopedia of Hinduism Vol. 3 (pp. 770-781). Leiden: Brill.
Mallinson, James & Singleton, Mark [Trad. e Ed.] (2017) Roots of Yoga. XXXX. Pinguin Clássics.
Singleton, Mark (2010) Yoga Body. The Origins of Modern Posture Practice. New York. Oxford University Press.