Se há termos caros ao Yoga, e a qualquer outra ciência contemplativa, abhyāsa será certamente um deles. Com frequência, opta-se por traduzir abhyāsa simplesmente como “repetição”, algo que faz sentido se tivermos em conta que transmite uma ideia geral de reiteração. Reiteração numa prática, exercício, estudo ou uso. Analogamente, também pode remeter a um hábito ou costume e a uma disciplina permanente assumida, inclusive de tonalidade militar. Perseverança ou persistência serão igualmente boas definições, se tiverem um fundo de desapego. Isto é importante porque abhyāsa remete para uma acção ardorosa, neutra mas intensa, porque deve ser incessantemente renovada, seja em que circunstâncias for. Isto fica traduzido em algumas leituras da palavra, em causa, que a associam a um estudo ou aprendizagem vindos do coração.
Globalmente, é a prática continua ou abhyāsa que permite adquirir endurance e proficiência no Yoga e meditação. Por conseguinte, abhyāsa é o motor de qualquer prática contemplativa.
Coloquialmente, podemos conceber abhyāsa como uma espécie de “teimosia positiva”, em que sempre se regressa à abordagem assumida. É uma questão de compromisso! Exemplificando, a pessoa para meditar tendo como foco a respiração tem que, através de abhyāsa, sistematicamente reconduzir a atenção às inspirações e expirações, observando-as. Inevitavelmente cairá na distracção, perderá o foco. Nesse caso, reitera, reconduzindo novamente a atenção ao foco meditativo assumido. Não há lugar a desespero, quando sobrevém a ideia de se ter falhado, “distraio-me sempre”, nem soberba quando se acredita que está a conseguir-se, “estive um minuto sem me distrair, fantástico”. Simplesmente, há repetição da prática. Ou seja, há que insistir! Daí que já se tenha dito que os teimosos tem vantagem na prática espiritual, pois, “apenas” tem que calibrar o foco da sua teima e desapegar-se dele. Esta é uma imagem consistente com a ideia de que pessoas tidas como “sombrias”, frequentemente, dispõem de mais argumentos que as “luzidias” no palmilhar espiritual. Não será ao acaso que vários textos soteriológios usam esta metáfora: a do ladrão, mentiroso, raivoso ou teimoso que é instado ou desafiado a fazer do seu “defeito” um instrumento de “virtude”, e fazendo-o, rapidamente atinge a Iluminação.
E por falar em sombra como outros pilares da prática espiritual, há comuns equívocos a respeito de abhyāsa. Que dizer de praticantes de “yoga” que competem, treinando determinada sequência yogāsana, horas, dias, semanas a fio, para a posteriori exibirem o resultado, perante si e perante a plateia selecionada? Aqui teremos o verdadeiro teimoso, ou “teimosia negativa”, que age para legitimar os delírios do ego. O mesmo acontecerá em proponentes de jñānayoga que estudam ad nausem, com o mero intuito de vencerem batalhas de retórica, no sentido de provarem que a sua filosofia espiritual é a superior. Aqui teremos a nossa tendência narcísica de estarmos acima do outro, em detrimento da perseverança necessária para deixar cair o ego no processo de busca. Pelo que, nem de propósito, repita-se: a acção contínua traduzida pro abhyāsa prevê intensidade de mãos dadas com desapego.
Abhyāsa é o que separa o trigo do joio também na vida mundana, porque essa não se separa da contemplativa, pelo contrário, são uma só. Com efeito, pratica-se tanto ou mais a espiritualidade no dia-a-dia convencional, não só no estúdio de yoga, na sala de meditação ou na câmara de oração, contrariando o que tradicionalmente se assume. Sem esforço continuo nada se alcança na vida como um todo. O futebolista, a analista, o escritor, a matemática, o jardineiro, a médica, etecetera, por mais talentosa que a pessoa seja, sem disciplina e constante repetição do esforço, focado ao objectivo, não há concretizações.
Como um ouroboros, abhyāsa é onde o princípio e o fim da prática se encontram, sempre.
Joel Machado
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