Do Sânscrito, saṅkalpa define “volição”, “desejo”, “propósito”, “determinação” ou “resolução”. Ainda hoje, na linha de sucessão da antiquíssima Tradição Védica, é comum iniciarmos uma prática de Yoga formulando um saṅkalpa. Isto é, num momento de ensimesmamento, para alguns semelhante a uma prece, assinala-se uma vontade, uma determinação mental que tem a solenidade de um voto ou declaração de intenção! Exemplos? Dedicar a prática ao bem de todos os seres, à melhoria de um familiar doente, ao encaminhamento espiritual de alguém recentemente falecido, a uma divindade tutelar. Há quem lhe infunda um carácter mais equiparado ao de um pedido. Aqui teríamos como exemplos, rogar pele entendimento acerca de um dilema interior ou obter algum tipo de benesse física. A pessoa pode formular o seu saṅkalpa em nome pessoal ou assumindo-se como a Unidade, brahman, ou a Divindade, śiva ou kālī. Em suma, a ideia de formular saṅkalpa será uma herança ou reflexo da componente ritualística (e em alguns momentos, religiosa) associada ao Yoga ou que influenciou a sua formação e desenvolvimento. De resto, esta é uma atitude transversal às Tradições Espirituais em geral. Vemo-la no Cristianismo, Islamismo, Judaísmo, Xamanismo, entre outros caminhos: a ideia de “lançar” ao Universo ou à Deidade, formalmente, uma aspiração a concretizar.
Todavia, o conceito de saṅkalpa pode encetar uma contradição fundamental. Como distinguir se será só mais um artifício do ego que quer, a todo o custo, manter-se vivo “inventando” narrativas de controlo? Se tivermos em consideração que a vontade pessoal pode não existir, afigurando-se como uma mera ilusão, resultante da percepção condicionada pelo véu de māyā, do que valerá formular resoluções? Na verdade, a maioria das metafísicas pendem precisamente na direcção da premissa em que o ser, individualmente, pouco ou nenhum poder tem sobre o que quer que seja. Se assim for, realmente, consagrações e intenções de prática ou serão inócuas ou alimentarão ainda mais o ciclo de ignorância e inconsciência. Pode ter um efeito ainda mais negativo, se enquadrarmos a formulação de saṅkalpa com um propósito hipócrita ou perverso! Quantas pessoas consagraram a sua prática espiritual no Santuário de Fátima, ao desejo de ver o seu clube de futebol campeão!? E aquelas que em Lourdes, França, rogaram pela morte de um ente próximo, de maneira a capitalizar a herança o mais brevemente possível?
A chave para resolver este dilema, talvez, será simplificar e desapegar. É tentador postar que qualquer saṅkalpa redunda na antítese da senda espiritual. Porém, não podemos negar que partimos daquilo que temos, um corpo, uma mente um ego, e que esses são movidos a um combustível que se chama “vontade”. Consequentemente, a prática espiritual tem na determinação o seu motor. Daí deverá manter-se consciente a relação com essa atitude: o que pretendemos e como pretendemos. Se houver uma expectativa ou consequência desejada, relativamente ao decurso de qualquer acção, pensada ou consubstanciada em acto, então o risco de apego ou já existe ou é, no mínimo, enorme. A solução residirá em tomar consciência disso e agir no sentido do desapego. Seguir o caminho de Garuḍa, também é uma via! Garuḍa, a águia, é uma figura central na mitologia e cultura Hindu pelo facto de, alimentando-se de serpentes peçonhentas, ter adquirido a adaptação biológica de ser imune aos venenos! A prática espiritual deve seguir esse paradigma. O aspirante à libertação pode ir bebendo veneno, em doses homeopáticas, até se tornar imune! O veneno aqui será o ego e seus anseios. Usar os ditos anseios de maneira a que acabem por se consumir, via desapego e discernimento.
Quem sabe o “melhor” saṅkalpa passe, ou por não ter saṅkalpa, ou por aspirar ao mais genérico e lhano possível.
Joel Machado
#joelmachado #yogaemistica #educarparaaespiritualidade #yoga #meditação #contemplação #espiritualidade #saṅkalpa #volição #desejo #propósito #determinação #resolução #yogaportugal #yogabrasil