(Marcela Manso) Māyā e līlā

Māyā e līlā estão presentes em todos os momentos da nossa vida. A arte, essa mesma à qual dedico a minha vida, é ela em si līlā e māyā, e vive de līlā e māyā. Mas precisamos ter presente que não podemos deixar que esta ilusão nos afogue e nos distancie do verdadeiro propósito de tudo.

É importante ter em mente que o mundo não nos dá nada, só tira, e estamos aqui para servir. Fazemos parte de um todo indissociável, do qual só nos conseguimos aperceber em momentos em que realmente entramos em meditação profunda e sentimos que não há diferença entre o dentro e o fora e que um espaço enorme se abre no peito, deixando de sentir as dores físicas e psicológicas. No resto do tempo, vivemos nesta ilusão de separação, “agredidos” diariamente por hiper estímulos e absorvendo por todos os sentidos conceitos de que a felicidade virá por consumir mac-lixo, ser os hiper fit, “bonzões e jeitosas do yoga”, com a saúde física eterna, esquecendo que yogāsana não traz saúde se não cuidarmos da saúde mental. Até a absorção dos alimentos está relacionada com o impacto do ambiente em que nos movimentamos, as rotinas de sono, a alimentação adequada, a resposta emocional e as influências espirituais, para além da actividade física adequada à idade e condição de cada um.

Nós nos concentramos na nossa identidade externa, a nossa profissão, a nossa aparência física ou nas dores físicas e psicológicas: traumas de sermos filhos de ex-militares que vieram doidos da guerra colonial (ou já eram antes de ir, por uma infância traumática de pobreza material ou emocional - ou ambas); vamos contando esta narrativa por aí, justificando todos os nossos actos, enchendo a vida de tralha física e emocional para preencher um vazio que temos dentro. Terminamos por passar isto aos nossos filhos e gerações futuras, sem parar para pensar que nada disto faz sentido, que o trabalho que temos serve apenas para alimentar um sistema ilusório, que a noção de sucesso é também ilusória, pois nem temos tempo de parar para respirar um pouco e ver para além do que a sociedade nos impinge, continuando nesta dança da ilusão. Enquanto não nos conseguirmos distanciar de tudo isto, do hiper consumo, inclusive nas supostas correntes espirituais, e não conseguirmos perceber quem nós somos para além destas mil capas que vestimos, não conseguiremos nos livrar de todo o sofrimento que nos oprime a alma.

É fundamental nos lembrarmos do conceito de Ubuntu, em Nguni Bantu, que significa “eu sou porque nós somos” e perdermos o medo de nos relacionar com o outro genuinamente, sem máscaras, porque não temos controlo sobre nada. A afectividade só acontece quando compreendemos genuinamente que fazemos parte de algo que é muito maior que nós. Algo que vem de um lugar de empatia, e não apenas de conceitos mentais. Algo que tem de se reflectir em todos os nossos gestos: inclusive na garrafa de água que compramos por ter preguiça de andar com um cantil e que jogamos no lixo indiferenciado, em vez de a guardarmos para colocar na reciclagem ou reaproveitar para outro fim; ou na relação com o outro quando estamos no transporte público e queremos sair ou entrar e está alguém impedindo a nossa passagem;ou nas relações mais difíceis, com os cônjuges ou família próxima, com os quais temos sempre aquele drama da desilusão de não corresponderem ao que esperamos deles, ou que imaginamos que deveria ser como deveriam reagir. É aí mesmo que temos de abdicar deste controlo ilusório e nos entregar de coração puro e aberto, custe o que custar, doa o que doer. E relembrar continuamente de Ubuntu e que o mundo não tem nada para nos dar, apenas tirar de nós, que estamos aqui para servir o todo, inclusive plantas, animais, a terra, a água, o Universo. E nesta luta da entrega e da perda do medo de sofrer é que conseguiremos atingir e viver o nosso svadharma, o nosso propósito comum de servir e abdicar do ego ilusório.

 

Marcela Manso

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(Eka Pāda Rājakapotāsana | Foto: Joel Machado)

 

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