(Artigo de Reflexão) ātman e ahiṃsā | Si-Transcendental e pacifismo

Ātman será um conceito matricial e motriz da prática de Yoga. Extrapolando, qualquer Ciência Contemplativa partirá do pressuposto de que se deve transcender a contínua identificação com a identidade pessoal para passar a uma “identidade” holística. Paradoxalmente isto trará inúmeros benefícios pessoais e, acima de tudo, trará bendições colectivas.

Quando mergulhamos no conceito de ātman ou essência primordial, entramos no pressuposto de que, não havendo fronteiras reais, entre o que quer que seja, então tudo está ligado e correlacionado. Lembremos a Teoria do Caos e o célebre Efeito Borboleta: o que acontece aqui repercute-se ali, espacialmente, temporalmente, e vice-versa. Trocado em miúdos, qualquer atitude individual de dada pessoa vai ter influência (não-negligenciável) no todo, mesmo que assim não pareça.

É desta noção de totalidade em que todos são o Mesmo, repercutida na interdependência, que surge um dos principais pressupostos do Yoga e de qualquer Ciência Contemplativa: o “pacifismo” ou “não-violência”, em sânscrito, ahiṃsā. No fundo, a atitude pacifista em relação ao outro e ao ambiente são um corolário da noção de ātman, pois se eu, o animal, a planta e o mineral somos Um Só, qualquer acto de agressão contra esses será um acto de agressão contra mim. Roubar um irmão numa partilha de herança é, primeiramente, “roubar” a ātman, logo, roubar a mim. Agredir um cão porque ladra continuamente é, primeiramente, “agredir” ātman, logo, agredir a mim. Abater um bosque de carvalhos para lucrar de modo fácil e imediato é, primeiramente, “abater ātman, logo, abater a mim. Rasgar uma mina de lítio para mero proveito pessoal e dos (considerados) meus é, primeiramente, “rasgar” ātman, logo, rasgar a mim. Ou seja, observando a qualidade da nossa relação com entes vivos e não-vivos, percebemos o quão sintonizados estaremos, ou não, com o Todo. Simplificando ou caricaturando ainda mais a exemplificação, imaginemos uma psicopatologia em que a pessoa não reconhece o seu corpo físico como um todo, pelo que, considera por exemplo uma mão como algo desassociado do resto. Se começar a descurar ou até a ferir a mão, isso trará consequências para o corpo todo. Com efeito, se infectar ou gangrenar poderá ocorrer septicemia a partir da mão, culminando na morte do corpo todo.

Sendo um pressuposto ético, ahiṃsā assenta na racionalidade. Talvez se sinta, contemplativamente. Porém, também poderá ser percebido logicamente. Facilmente se entenderá que agredindo uma pessoa, seja como for, ela quererá retaliar, e mesmo que não encontremos esse desfecho à primeira ou à segunda, invariavelmente ele virá. Portanto, havendo um mínimo de lucidez pessoal e colectiva, o que parece não acontecer na generalidade, rapidamente se entende que a agressão é um comportamento que trará consequências negativas para todas as partes envolvidas (e, a posteriori, aparentemente não envolvidas). Analogamente, não deve ser imposto, antes, ahiṃsā deverá vir na consequência de um entendimento. Se a pessoa, intelectualmente ou contemplativamente abeirar a experiência de totalidade inerente ao conceito de ātman, então, naturalmente assumirá o pacifismo. Talvez por isso, muitas pessoas que passam por experiências de morte aparente se tornam mais gregárias, menos egoístas, devotando a “segunda” parte das suas vidas a causas altruístas. O exemplo de David Milarch, norte-americano que depois de ter passado pela morte na sequência de falência renal e, ainda assim, ter voltado ao “mundo dos vivos”, parece ilustrativo. Tendo experienciado a interdependência que nos ligará a todos, selou o voto solene de salvar as sequóias gigantes, actualmente ameaçadas, agindo concreta e activamente nesse sentido.

Ora, diríamos que David Milarch incorporará uma verdadeira prática contemplativa. Praticar Yoga sem ter em consideração estes pressupostos de interdependência será, no mínimo, um contrassenso. Para quem advoga karma e ainda assim, insiste em manter atitudes violentas, será uma espécie de tiro no pé.

 

Joel Machado


(Sinalização no Parque da Pena - Sintra | Joel Machado)

 

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