A Origem Védica do Mantra (Andre Padoux)

Que Yoga e Mantra estão intimamente relacionados é uma ideia consensual. André Padoux, o Indólogo francês, recentemente falecido, foi provavelmente um dos maiores contribuidores para o estudo dessa relação, algo que ficou patente no seu trabalho de onde se poderia destacar, por exemplo, obras como Recherches sur la symbolique et l'énergie de la parole dans certains textes tantriques ou L'énergie de la parole, cosmogonies de la parole tantrique. Será na linha da sua investigação que se baseará este artigo.

A etimologia da palavra mantra (Sânscrito: मन्त्र) remete para a raiz verbal Man que significa “pensar” intencionalmente, redutível a uma forma activa de pensamento. Acrescenta-se a esta raiz o sufixo Tra que é utilizado para formar palavras indicando algum tipo de instrumento, faculdade ou função. Deste modo, etimologicamente, um mantra será um meio ou instrumento de pensamento que será necessariamente, intenso, concentrado e eficiente. Posteriormente, no contexto do mantraśāstra, a ciência tântrica do mantra, o sufixo Tra ocorre associado à raiz verbal Trai, desta feita, “salvar”, sendo o mantra enquadrado como uma forma de pensamento que conduz à Salvação – portanto, com um carácter soteriológico. Com efeito, Abhinavagupta, um místico tântrico do séc. X-XII, afirmou que os mantra-s constituem mananatrāṇarūpa, pensamento e salvação, ou seja, uma forma de pensamento libertadora.

Normalmente, aceita-se que o idioma “oficial” dos mantra-s é o Sânscrito, na medida em que se formam a partir de palavras ou silabas sânscritas. Esta concepção fará sentido atendendo ao facto do mantra ser visto como uma forma de poder ou vāc, a palavra primordial proferida na linguagem sânscrita.

Contudo, o termo mantra, presumivelmente surgindo há cerca de três milénios para cá, nem sempre tem vindo a ser empregue em alinhamento com a etimologia propriamente dita, com efeito, denotando mais a época e cultura em que é usado, tem sido utilizado para se referir a diferentes práticas espirituais, rituais, meditativas e yoguicas, em geral, e a variadíssimas formas ou tipos de “afirmações” fonéticas e linguísticas.

Então, de onde remontará a origem do mantra? Crê-se que aos primórdios da Civilização e Cultura Védica.

No Período e conjuntura dos Veda-s o nome mantra refere-se aos textos métricos compilados nos Saṃhitas que eram recitados, murmurados ou cantados durante os sacrifícios védicos, sejam eles, ṛc, yaju-s ou sāman, isto é, hinos (poemas), fórmulas sacrificiais ou cânticos. Nesse contexto, tudo o que não constituía brāhmana (regra ou explanação) era mantra. Na liturgia védica, os mantra-s eram o elemento essencial da consecução do ritual, por mais complexo ou diverso que se pudesse assumir. Eram considerados instrumentais no cumprimento do acto sacrificial, simultaneamente, causando e efectivando o sucesso ou insucesso do sacrifício, dependo do modo como eram aplicados. O célebre Gāyatrī, a invocação a Savitur, o Sol, uma fórmula sagrada posteriormente utilizada como mantra é originalmente védica, compondo o verso 10 do hino 3.62 do Ṛgveda.

Gāyatrī Mantraḥ

ॐ भूर्भुवः स्वः तत्सवितुर्वरेण्यं । भर्गो देवस्य धीमहि धियो यो नः प्रचोदयात् ॥

Oṁ bhūr bhuva svāḥ | tat savitur vareṇyam bhargo devasya dhimahi |dhyoyo naḥ prachodayāt ||

Meditemos na excelsa glória da Divina Luz vivificante, o Sol; Presente na Terra, na Atmosfera e no Céu; Que Ele ilumine a nossa Consciência.

Encontram-se nos Brāhmaṇa-s e nas Upaniṣad-s mais antigas descrições do uso meditativo de mantra-s, no contexto do Yoga, assim como especulações místico-linguísticas acerca da sua natureza, estrutura fonética e valor simbólico. No Jaiminīya Upaniṣad Brāhmaṇa, a divindade Prajāpati cria o céu, o espaço intermédio e a terra através dos três vyāhṛti-s, bhuḥ bhuvaḥ svaḥ, sendo a essência do seu discurso o Oṃ. A Chāndogya Upaniṣad conta uma lenda símile, acrescentando que “o som Oṃ é todo o Universo”. Analogamente, a Taittirīya Upaniṣad afirma que “Oṃ é Brahaman”. Portanto, a natureza divina e poder do mantra Oṃ é proclamada ao longo das Upaniṣad-s mais antigas: esta proclamação do Oṃ como condensando e encapsulando numa só silaba a totalidade dos Veda-s (por outras palavras, o Conhecimento) é relevante pois mostra que, desde os tempos védicos, afirmações breves e condensadas receberam primazia sobre outras longas ou extensivas, um conceito que é mais tarde encontrado nos bījamantra-s tântricos. Outras fontes védicas mostram também a decomposição do Oṃ em fonemas constituintes, A, O, M, que são posteriormente correlacionados com diferentes tríades: os três Veda-s, as três partes do Cosmos, os três sopros vitais e etecetera, um traço mais tarde verificado no mantraśāstra. Na Maitrī Upaniṣad, a mais recente das antigas Upaniṣad-s, diz-se que “o Oṃ é a essência de tudo no coração humano, que a meditação em Brahman repousa eternamente nele, e quando desperto eleva-se à garganta como um átomo de som, atinge a ponta da língua, finalmente fluindo na forma de discurso”. “A pessoa que vê tudo isto”, acrescenta a Upaniṣad, “vê apenas o Absoluto e é libertada da morte e sofrimento”. Mais uma vez, nota-se que este processo mental e corporal não difere substancialmente da posterior aplicação do mantra no Tantra. A origem de tais conceito antropocósmicos, como já se referiu para o conjunto de outras noções e práticas de mantra, podem ser rastreadas aos tempos Védicos. De igual modo, a ideia de que a afirmação sussurrada (upāṃśu) ou inaudível do mantra é superior à sua entoação audível, sendo a pronunciação silente (tuṣṇīm) a mais elevada de todas, data também do Período Védico. Com efeito, no Śatapathabrāḥmaṇa o discurso silencioso ou indistinto (anirukta) é colocado no topo da hierarquia, por representar o Ilimitado. Esta é também uma ideia ulteriormente desenvolvida no Tantra.

Após o período hegemónico dos Veda-s, passando pelas Upaniṣad-s, pela súmula de cultos Védicos Śrauta e Smārta, pela literatura e ritos derivados dos Puraṇā-s, outros mantra-s foram adicionados ou conjugados aos originalmente védicos. Um exemplo paradigmático é o surgimento do Oṃ Śivāya Namaḥ ou Oṃ Namaḥ Śivāya, mantra de Śiva. É importante referir que, durante esse curso, ocorre uma certa popularização do uso de mantra-s, deixando de estar exclusivamente confinada aos sacerdotes védicos. Em todo o caso, a maioria dos traços associados ao conceito e aplicação do mantra mantiveram-se ou foram “simplesmente” desenvolvidos, sendo que a associação do mantra a uma deidade, e ao seu poderio, é algo que recebe particular ênfase no corpus tântrico. Em suma, e de um modo geral, o Período Védico e Upaniṣadico mostra a origem dos aspectos distintivos do mantra e sua utilização, que são mais tarde desenvolvidos no mantraśāstra do Tantra. Fundamentalmente, enquanto fórmulas ou afirmações imbuídas de poder e outorgadas a uma origem sobrenatural, os mantra-s herdarem e trouxeram até aos dias de hoje a concepção védica de Vāc, a Palavra, tida como Poder Supremo, posta acima de tudo o resto, identificada com Brahman, o Absoluto.



Joel Machado



Baseado no artigo “Mantra” de Andre Padoux compilado em “The Blackwell Companion to Hinduism” (Oxford: Blackwell, 2003).

 

 

(Japamālā e Mantra, Joel Machado)


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