Normalmente praticamos āsana para: (1) tonificar o corpo através da acção muscular e aeróbica; (2) relaxar o aparelho psíquico por consequência da concatenação respiração-condicionada e alongamento; e (3) com um fim meditativo. Ao levar a atenção continuamente ao corpo, impedindo que a mente se disperse em identificação com os conteúdos que surgem avulso, fomentando um estado de Presença e de conservação de energia. Diríamos que estes são os pressupostos por excelência de yogāsana, quando salutar.
Contudo, algumas fontes, tradicionais e textuais, propõem uma leitura da prática de āsana muito diferente daquela que tomamos por canónica. Segundo essas, āsana-s seriam antes uma consequência da prática de Yoga. Ou seja, ao invés de as provocarmos, devíamos permitir que espontaneamente acontecessem. Fundamentalmente, através de exercícios respiratórios, ou da consecução de rituais, em consequência, o corpo assumiria involuntariamente posturas de êxtase, pelo tempo que durassem.
Este intrigante nível de análise, diríamos, pode ter duas leituras, uma antropológica outra psicológica.
Felicitas Goodman, linguista e antropóloga, dedicou parte considerável da sua investigação a esta questão das posturas extáticas e glossolalia, no contexto do ritual xamânico. Speaking in Tongues e Where the Spirits Ride The Wind: Trance Journeys and other Ecstatic Experiences são os seus trabalhos mais célebres. Porém, outra obra merece atenção a propósito do tema em causa, Ecstatic Transe New Ritual Body Postures A Workbook, em colaboração com Nana Nauwald. Nesse trabalho, estabelece-se a relação entre oitenta posturas e concomitantes estados de transe. As investigadoras verificaram que cada uma dessas posturas pode induzir estados alterados ou modificados de consciência se executada em conjunto com exercícios respiratórios e um acompanhamento rítmico a cerca de 210bpm. Verificaram também que grande parte das posturas ocorrem, com pouca ou nenhuma variação, em diferentes culturas no globo. A esse propósito apontam o exemplo concreto de várias āsana-s de Haṭhayoga Clássico estarem presentes no conjunto de oitenta posturas de transe xamânico que identificaram. Um caso paradigmático seria a comparação entre Siṃhāsana (Leão) e uma postura datada de antes de Cristo, “The Man of Bahia”, encontrada na Baia de Caraquez, Equador: ambas implicam uma posição sentada em que se projecta a língua para fora, tanto quanto for possível. O mesmo se verifica com posturas do tipo Padmāsana (Lótus): a postura “The Snake Woman of Myrtos”, identificada em Creta, Grécia, e datada de 4500 a.C. é um exemplo claro. De resto, crê-se que estas posturas xamânicas de perna cruzada foram “importadas” pelo Yoga que, como se sabe, ou deriva ou assimilou elementos do Xamanismo na fase mais precoce da sua evolução. Os próprios exercícios prolongados de respiração, identificados no Xamanismo, são semelhantes o que se verificam no Haṭha e no que restou ao Yoga de hoje.
Este aspecto abre as portas à leitura psicológica em questão. Parece claro que a conjugação entre certas posturas corporais e respiração condicionada a um ritmo definido, causam alterações psicológicas dramáticas. Donde, surgem outras questões? O que vem primeiro, o “ovo ou a galinha”; é a postura física que leva à alteração psicológica ou o contrário? As posturas de transe são involuntárias, resultado do transe, ou são elas que levam ao transe? As respostas a estas questões não são certas, o mais provável é que ambas as instâncias, postura corporal e estado psíquico, se influenciem mutuamente! A verdade é que tanto há relatos de uma postura provocar determinadas libertações psicológicas, como de determinadas reacções psíquicas levam ao assumir involuntário de certas posturas (frequentemente, extensões da coluna). Coloca-se ainda outra questão: que tipo de alterações psicológicas ocorrem? Podem ser conformadas a um padrão? Também não é totalmente claro, diríamos no entanto que teremos dois tipos de “resposta” psicológica: a libertação de materiais inconscientes retidos, fisicamente repercutida; e experiências de dissolução de ego. Com efeito, estes dois tipos enformam os relatos mais comum. Normalmente, temos descrições de narrativas relativas ao mundo interior do sujeito, em linguagem onírica, portanto simbólica. Aqui teríamos uma função de higienização psíquica, como quando temos sonhos de depuração durante a noite. O transe levaria o sujeito a encarar e libertar determinadas memórias ou estruturas psicológicas caducadas ou insalubres e isso poderia vir associado a um fenómeno motor, como as célebre danças histéricas de São Vito. Portanto um efeito, terapêutico. Há igualmente descrições de experiências de unidade, em que as barreiras impostas pelo autoconceito parecem dissolver-se, permitindo ao sujeito percepcionar o entorno como um todo indivisível, do qual ele faz parte.
Em suma, e com tudo o que fica em aberto, devemos ter presente que āsana no Yoga pode ser configurada de duas maneiras: como um resultado ou como um instrumento que visa provocar o resultado.
Joel Machado
(Siddhāsana, Padmāsana e Siṃhāsana, Joel Machado)
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