Haṭha Clássico e Tradição Textual

Durante bastante tempo, falar de Haṭha remetia a conversa ao Haṭha(yoga)pradīpikā e, marginalmente, ao Śivasaṃhitā e Gheraṇḍasṃhitā, pelo menos no que toca à Transmissão Textual de ensinamentos. Recentemente o figurino mudou, fundamentalmente no decurso da velocíssima expansão do Yoga além Índia e, sobretudo, com os avanços levados a cabo por uma nova geração de investigadores. Com efeito, dos primeiros trabalhos seminais de Mircea Eliade aos dias de hoje as alterações são imensas. O campo do Haṭha, que até há pouco tempo havia sido parcamente estudado, não é excepção e tem sido o foco do Haṭha Yoga Project (1), levado a cabo pela School of Oriental and African Studies (SOAS) (2), sob a direcçao de James Mallinson (3).

Graças aos esforços dos investigadores do Haṭha Yoga Project, alguns simultaneamente praticantes de Yoga e Meditação, a percepção fundamentada que temos hoje do Haṭha é mais profunda e lúcida. Portanto, tudo o que se acredita saber acerca das origens e desenvolvimentos do Haṭha ganhou novos contornos.

Relativamente à génese do Haṭha, percursoramente a versão tradicional, imbuída de mito e folclore, sustentava que Ādi Śiva teria transmitido os seus ensinamentos a Matsyendra que, por sua vez, os teria passado a Gorakṣa, inaugurando a Linhagem dos Siddha-s, os “Perfeitos” ou “Aperfeiçoados”, mestres Nāth-s responsáveis pela prática e transmissão do Haṭha; mais tarde, por influxo divino, Svātmārāma teria consignado este conhecimento, textualmente, sob a forma do Haṭha(yoga)pradīpikā, tipificando o Haṭha pela diminuta contextualização teórica e metafísica em favor de uma componente fortemente prática alicerçada em técnicas de purificação (kriyā-s, ṣaṭkarma), de respiração (prāṇāyāma) e fechos ou selos de energia vital (mudrā-s), tudo com vista a atingir o rājayoga. As versões históricas e etnográficas, como seria de esperar, apontam hipóteses diferentes. Como foi referenciado, os primeiro registos a ter em consideração pertencem a M. Eliade (4), mentorado por S. Dasgupta, e mencionam um texto perdido, denominado Haṭha, a partir do qual Svātmārāma teria redigido o Haṭha(yoga)pradīpikā. Em todo o caso, M. Eliade refere já o importante papel das formas de espiritualidade primitiva da Índia Aborígene, particularmente do Xamanismo e Alquimia, bem como da influência do Tantra, na formação e consolidação do Haṭha.

Depois dos esforços do Haṭha Yoga Project, tendo-se reunido, traduzido e analisado filologicamente uma série de “novos” textos de Haṭha (vide Quadro 1), trouxeram-se profundas mudanças ao enquadramento teórico deste assunto. O Haṭha(yoga)pradīpikā, ou simplesmente Haṭhapradīpikā, passa a ser definido como o texto representante do “Haṭha Clássico”, marcado pela influência dos tratados que o precederam (textos pré-Clássicos) e influenciando os que se lhe sucederam (textos pós-Clássicos), um pouco à imagem do significado que tem o Yogasūtra-s de Patañjali para o Yoga em geral, em termos de “antes” e “depois”.


Chegaram simultaneamente à conclusão que esta importante obra é uma tentativa de integrar conhecimento e práticas (por vezes em contradição) que já eram comuns entre a heterogeneidade de praticantes de Haṭha, sem que envergassem entretanto essa designação, pelo menos formalmente. Isto posto, reconhece-se uma intenção universalista a Svātmārāma na redacção do Haṭhapradīpikā ao compilar importando versos presentes em oito textos, principalmente: Amṛtasiddhi, Dattātreyayogaśastra, Gorakṣaśataka, Vivekamārtaṇḍa, Yogabīja, Kecharīvidyā, Amaraughaprabodha e Śivasaṃhitā. Crê-se que estes textos serão maior ou menormente anteriores ao Haṭhapradīpikā, tendo géneses diferentes: por exemplo, o Amṛtasiddhi, de origem aparentemente Budista, contrasta com o Śivasaṃhitā, que reflecte uma apropriação ou assimilação Vedānta das técnicas do Haṭha, processo que veio a ganhar ainda mais força com o estabelecimento das Yoga Upaniṣad-s, como é proposto por Bouy (5). Do mesmo modo, é importante frisar que os textos de Haṭha devem ser entendido na sua relação com a Alquimia Indiana, como o referem vários autores com destaque para David Gordon White (6), os Tantras Śaiva-s e Vaiṣṇava-s. Ademais, elementos de tradições Ascéticas, fundamentalmente identificadas com Tapas, precederam e imbuíram o Haṭha sendo, pela primeira vez, passadas da oralidade para a escrita: isto tem implicações, uma delas será a origem da ênfase na prática de posturas físicas não-sentadas, que mais tarde se vem a tornar “dominante” no Yoga (é de notar que, por detrás disto, estará também o legado tântrico de valorização do corpo físico enquanto veículo de ou para a prática espiritual). Finalmente, sabe-se que o Haṭha terá tido influência Islâmica, eventualmente da Mística Sufi e Alquimia Persa, algo patente no reconhecimento de alguns tratados de tez muçulmana como sendo de Haṭha: o Ḥawz al-ḥayāt e Baḥr al-ḥayāt.

Em suma, sendo uma tentativa de chegar a um sincretismo universalista, o Haṭha Clássico de Svātmārāma acaba também por ser uma tentativa de democratizar a prática de Yoga além do estrato renunciante e às classes sociais e credos em geral, mais profunda do que aquela já verificada em certa fase da consolidação do Tantra como “religião” ou “prática contemplativa” dominante.


Joel Machado



Notas
(1) http://hyp.soas.ac.uk/
(2) https://www.soas.ac.uk/
(3) https://www.soas.ac.uk/staff/staff89770.php
(4) (1954) Yoga Immortality and Freedom. New York. Princeton University Press.
(5) (1994) Les Nātha-yogin et les Upaniṣads: Étude d'histoire de la littérature hindoue (Publications de l'Institut de civilisation indienne). Paris. Diffusion de Boccard.
(6) (1996) The Alchemical Body. Siddha Traditions in Medieval India. Chicago & Londons. TheUniversity of Chicago Press.



Bibliografia

Bouy, Christian (1994) Les Nātha-Yogin Et Les Upaniṣads. Paris. Diffusion de Boccard.

Eliade, Mircea (1958) Yoga, Immortality and Freedom. New York. Princeton University Press.

White, David Gordon (1996) The Alchemical Body. Siddha Traditions in Medieval India. Chicago – London. The University of Chicago Press.