(Artigo de Opinião) Narcisismo, Sociopatia e Psicopatia no Yoga

Um dos maiores problemas actuais e globais será a falta de empatia. Usar os outros como se fossem um meio para atingir um fim. Ter qualquer interlocutor como um potencial entrave a ser eliminado ou uma mais-valia a ser instrumentalizada. Estar nas relações humanas sob a égide do “usa e deita fora”, sem qualquer tipo de escrúpulo. São três exemplos típicos de comportamentos banalizados, resultantes de falta de empatia. A partir do momento em que não se investe na educação, na ética, na espiritualidade sem dogma, bem como se fomenta um sistema canibal de competição em detrimento da cooperação, a falta de empatia é uma mera consequência. Não há que queixar se não se agir para mudar!

Não espanta portanto, que tanto se fale acerca de narcisistas, sociopatas e psicopatas na medida em que todas as designações falam de condições psicopatológicas nas quais se destaca a falta de empatia. Nem sempre é fácil ou linear traçar uma distinção entre os três quadros, contudo, é relativamente consensual que do primeiro para o terceiro há precisamente um crescendo de falta de empatia e de remorso.

Aponta-se muito a existência de narcisistas no entretenimento, sociopatas no mundo financeiro e psicopatas na política. Banqueiros e políticos costumam ser os bodes expiatórios por excelência. Mas será só nesses contextos que temos gente com repressão ou ausência total de empatia? Diríamos que não, que o problema é generalizado, pelas razões que apontamos atrás.

No particular dos ambientes pseudo-espirituais, onde se inclui o Yoga, podemos ter autênticos viveiros de narcisistas, sociopatas, psicopatas e doentes mentais em geral. Isto de facto não é uma novidade, se olharmos para a escabrosa história das religiões, seitas e guru-s na Índia, no Ocidente, em qualquer parte do mundo. O próprio DMS – IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), a partir de 1994, passou a incluir uma categoria de distúrbios espirituais (1). Isto não surgiu ao acaso. Sabe-se que quando o Yoga chegou ao Ocidente, esteve relacionado a um acréscimo de surtos psicóticos e problemas mentais afins.

Serão múltiplas as razões para encontrarmos doença mental nos ambientes espirituais. Não cabe aqui observar todas, apesar do seu inegável interesse. Apontaremos “apenas” o problema do poder, no seu exercício pessoal e nas relações.

Um dos maiores desafios do ser humano será, justamente, o exercício de poder: sobre si próprio e na relação com os outros. “Se queres saber do carácter de uma pessoa, dá-lhe poder” é um adagio transversal a variadíssimos domínios do saber. Poder liga-se ao ego, pois uma das suas funções tem a ver com a gestão de poder. Na esfera individual, o ego gere a percepção de poder interior, no sentido de criar coesão nas narrativas pessoais que são construídas para tentar estruturar o Universo. Na esfera relacional, o ego gere a percepção de poder sobre o próximo, como garante de trocas e protecção (da percepção) de individualidade. Sendo ambientes onde se aglomera muita e profunda fragilidade física, psicológica e existencial, os círculos espirituais acabam por ser arenas de lutas interiorizadas e exteriorizadas que são sobretudo jogos de poder. Isso acontece porque, não entendendo o objectivo da Contemplação, incorremos no erro de cair na sua antípoda. Qualquer Tradição Espiritual ou Ciência Contemplativa aponta como fim universal sair das malhas do ego. O que muitas vezes fazemos é substituir uma identidade depauperada por outra que se considera empoderada.

O ego não é um problema em si, trata-se de um instrumento cognitivo. A mácula vem no que fazemos com ele. Vamos supor que teremos um ego pessoal e um ego colectivo. Consoante a relação que tivermos com essas instâncias podemos ter uma organização psico-social salutar do mundo em que vivemos, ou cair no egocentrismo e sectarismo. Portanto, quanto maior for a nossa dificuldade ou incapacidade em reconhecer que o ego é uma parte, volátil, e não o todo, maior a probabilidade de disfunção e patologia.

Consequentemente, poderemos ter níveis de relação com o ego: funcional, disfuncional e patológico. Se o ego for enquadrado estritamente pelo que vale, uma ferramenta, teremos com ele uma relação funcional. Só porque se tem um braço, não se vai identificar existencialmente com esse; o mesmo é válido para o ego. Tal sucede quando o yogin não se identifica com emoções de raiva ou euforia e entende que são transitórias. Tomar banho é reflexo de um ego saudável, bem como manter uma boa dieta, pois garantem uma nave corporal em bom estado. Na relação disfuncional com o ego, perdemos grandemente a capacidade de nos destacarmos das narrativas por ele criadas para estruturar o mundo. Teremos a imagem da pessoa que se autogratifica antes, durante e após a prática de āsana, como se essa fosse o fim em si. Similarmente, a pessoa que sente superior aos demais por ser vegetariana e considerar isso condição sine qua non para a superioridade. Ou seja, quando ocorre o fenómeno do “ego espiritual”, no domínio do narcisismo. No caso de patologia, este fenómeno do ego espiritual assume proporções intangíveis. Quando o sujeito se considera Cristo e acha que tem que ser tratado em conformidade. O guru que abusa dos seguidores a todos os níveis, físicos e psicológicos, alegando que isso só os irá beneficiar karmicamente, em virtude da sua santidade. A criatura que alega ter sido Joana d’Arc ou o Apóstolo Paulo numa vida anterior. A realidade resume-se àquela que é tecida pelas “entidades” ou “alter-egos” que formam o autoconceito. O sujeito tem como objectivo único a satisfação dos seus desígnios, o que se associa a uma falência total de empatia, pelo que entramos na sociopatia e psicopatia.

Resta saber o que é doença mental ou falha de carácter. Esta é uma pergunta frequente. O que separa puro e calculado oportunismo de narcisismo ou sociopatia? Não haverá quem apareça nestes meios para simplesmente capitalizar, explorando um nicho, mesmo sendo “normal”? Questões pertinentes, quiçá labirínticas. Seria um debate de moralidade, e aqui pretende-se racionalidade. Daí a “vantagem” de enquadrar a discussão do problema em termos de funcionalidade, disfuncionalidade e com relação aos alter-egos que compõem a nosso autoconceito. No fundo, tudo remeterá ao mesmo, diríamos: a deficiente relação com o ego. Precisamente o problema basilar que Yoga, como qualquer outra Ciência Contemplativa, se propõe resolver.

 

Joel Machado


(Joker, Joel Machado)


 

1 https://www.researchgate.net/publication/247719132_From_Spiritual_Emergency_to_Spiritual_Problem_the_Transpersonal_Roots_of_the_New_DSM-IV_Category

 

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