Etimologicamente, a palavra “morte” vem do Latim mors que, por sua vez, derivará do sânscrito mṛtyu. Com efeito, verificamos formas semelhantes em várias línguas de génese Indo-europeia, a partir da raiz “mor”: arménio (meranim), lituano (mirtis), irlandês antigo (marb), anglo-saxão (morb), entre outros casos. Por seu turno, no hebraico usa-se o vocábulo mavet e a raiz mwt. Parece haver uma óbvia linha comum.
No espaço da Cultura Ocidental, a mitologia grega apresenta Thánatos como Deus ou personificação da Morte, tendo como mãe a Noite, Nix, e irmão gémeo o Sono ou Sonho, Hypnos. Estas deidades e genealogia são vertidas para o panteão romano, respectivamente, como Mors, Nox e Somnos. Também conhecido com Leto, na Mitologia e Literatura Romanas Mors é frequentemente associado a Orco, Dis Pater, Marte e Plutão, deidades da Vingança e Justiça, Riqueza, Guerra e Mundo dos Mortos. Se quisermos virar a Oriente, de entre as inúmeras representações alegóricas da morte, Mara talvez seja a mais próxima de Mors.
Entre os romanos, Mors seria mais temido que adorado. Para gregos, Thánatos teria um carácter libertador. Extrapolando, vejamos o termo “eutanásia” que supõe “boa morte”. Se tivermos em conta que Roma tinha um pendor bélico e Grécia se orientava à Filosofia, não espanta. Comum às duas Culturas, versões Orientais e não só, é a ideia de morte como um estado de sono. Mortos, estaríamos como que dormindo, sonhando ao sabor do inconsciente que colectámos ou não clarificámos, durante a vida (ou vidas). Por esta razão, por exemplo, na Tradição Tibetana Budista dá-se profundo valor ao chamado Yoga dos Sonhos. Este consiste em, todas as noites, treinar a atenção ao momento presente, de maneira a entrar no sono com lucidez. Pressupõe-se que não haja grande diferença entre adormecer e morrer, pelo que a pessoa capaz de adormecer conscientemente, terá também adquirido a capacidade de morrer conscientemente. Por conseguinte, poderá condicionar a reencarnação, prosseguir numa existência espiritual ou Libertar-se. Este Yoga Onírico ocorre em variegadas Tradições Espirituais, enquanto técnica mestra.
No caminho Espiritual, genericamente, viver consciente da iminência da morte é uma das principais ou a principal ferramenta contemplativa. Discutiríamos violentamente com alguém se soubéssemos que no dia seguinte iria adoecer, sofrer e falecer? Deixaríamos por declarar um amor se soubéssemos a data da nossa partida? Escolheríamos uma profissão por interesses materialistas, em detrimento da realização pessoal-espiritual, se descobríssemos que em vez de 80 vamos viver “só” 40 anos? Ficaríamos na prisão do apego às ideias e sentimentos, lutando para as preservar e impor, se condescendêssemos que em última análise são conceitos de validade circunstancial e transitória? Certamente, se não agíssemos olvidados da nossa “mortalidade”, seríamos criaturas mais leves, virtualmente “imortais”. Psicologicamente não se pode matar aquilo que não morre. E como não se morre? Para começar, assumindo a incontornável vulnerabilidade, ou seja, que qualquer instante pode ser o último, nosso ou de outrem, com ou sem aviso! Isso implica um tremendo golpe no ego, senão a sua aniquilação!
Com tanto de compreensível como de incompreensível, continuamos a conceber a morte como o pior dos cenários. Se passamento e luto de um querido não são fáceis, até de um desconhecido, olhando acima do nosso auto-conceito veríamos as coisas de modo distinto. Não será a morte o adubo da vida!? A formação de um solo fértil é paradigmática disso! De uma semente gera-se a planta pioneira. Essa medra gerações que vão sucessivamente perecendo, acumulando húmus da matéria decomposta. Com o tempo formam-se camadas de terra, fresca, húmida! O resultado: de um solo outrora árido, surge um terreno abundoso! Da esterilidade de um páramo à abundança de uma floresta! Em suma, o que está vivo, literalmente depende de algo ou alguém que morreu. Assim se processa a natural regeneração. Tudo o que vemos ao redor, ervas, arbustos, árvores, bichos humanos e não-humanos, nasceu do “sacrifício” dos seus antecessores e o preço a ser pago, vamos chamar-lhe assim, é “sacrificar” a sua existência momentânea para gerar nova vida. Ademais, será realmente um “sacrifício? Não será um dever, honra ou dádiva, retribuir o milagre da vida com nossa própria vida? Onde estaríamos, se os antepassados não tivessem sucumbido por nós, pela Civilização? Perguntamo-nos, a péssima relação que a maioria das culturas actuais mantém com o decaimento e a morte, estará na base do colapso do tecido social? De facto, parece haver a tendência vigente para se apontar e recriminar os erros do passado, ao invés de os enquadrar num contexto e a par de todas as coisas boas que também foram feitas! As vagas de egolatria e falta de empatia, claramente não serão compatíveis com a inevitabilidade da morte, tampouco com uma vivência salutar e madura da mesma. Triste talvez não seja morrer. Triste, talvez seja morrer sem ter legado algo, sem ter gerado “manta-morta” para os que estão e os vindouros.
Talvez morte e vida simplesmente não se possam conceber separadamente, como se fossem um só conceito que nós, confinados ao egoísmo, partimos em dois. Abraçar a morte, muito provavelmente, levará a abraçar a vida, desfrutando plenamente desta sem temer aquela.
A sublimação da relação com a mortalidade será a derradeira prova espiritual: figurativamente, quando falamos da morte do ego; literalmente, quando experienciamos a morte própria ou de próximos. Consta que uma menina, com o si e o aparelho psíquico ainda por cristalizar, lamentava a morte do gato. Triste mas com admirável desapego, terá concluído que essa é uma das aprendizagens que os bichos-de-companhia nos vêm ensinar: por durarem menos, ensinam a prepararmos os nossos corações para a perda dos que duram mais. Um exemplo enternecedor da dita sabedoria das crianças!
Ao final da jornada, quando se nos anoitecer, quem devemos escolher!? Mors, cruel e maquinal, ou Thanatos, benévolo e ciente? Para ressuscitar, seja como for, com certeza será necessário saber morrer em paz e consciência. Seja nas ininterruptas mortes psicológicas que o simples facto de estarmos vivos acarrecta, seja na “derradeira” morte fisiológica, fica então o voto: ressuscitemos sempre, abnegada e conscientemente.
Joel Machado
(Cabeço do Calvário - Sintra | Foto: Joel Machado)
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