Do sânscrito, vairāgya significa “desapego”. Usualmente, apontam-se duas origens etimológicas ao termo: “ausência de paixão” ou “ausência de coloração”. Se a primeira será relativamente óbvia, a segunda assenta numa metáfora que implica um estado em que a pessoa está integrada na vivência mundana, porém, sem ser “tingida” pelos atributos ou “cores” da mesma.
A quantidade de textos seminais que dispensam aforismos, páginas, capítulos à noção de desapego na prática espiritual é incomensurável. A Oriente, Patãnjali (Yogasūtra-s, I:15), corresponde vairāgya ao domínio dos desejos nutridos relativamente aos objectos percepcionados. A Ocidente, para os Estoicos, apatheia, grego, supõe um estado de espírito em que se está imperturbável relativamente às emoções (Marco Aurélio, Meditações).
Esta relação com a emoção constitui o aspecto fundamental do entendimento e prática do desapego. Agimos desapegadamente quando conseguimos reconhecer e cessar a compulsão para reagir emocionalmente a eventos internos, engendrados pelo aparelho psíquico, e externos, gerados pelo meio-ambiente. Não significa negação ou embotamento emocional. Neste sentido, vairāgya é uma renúncia não-antagónica, distinta de repulsão, rejeição ou mortificação, tudo atitudes que efectivamente presumem apego. Constatamos as emoções, quebrando a constante prisão às mesmas, mas não as negamos. Portanto, supõe um distanciamento consciente e neutro face às emoções, assente no entendimento da sua natureza, e na consequente necessidade de nos desidentificarmos delas para, ulteriormente, nos libertarmos da cíclica formação e cimentação do auto-conceito. Trava-se o constante processo de julgar que algumas coisas são “boas” e outras “más”, agarrando-nos a umas e fugindo das outras, quando simplesmente são! Por outras palavras, vairāgya implica também abdicar de querer controlar o que não é controlável.
Exemplos de como isto se aplica no dia-a-dia? Quando tentamos provar algo a alguém, ter a razão a todo o custo, prendemo-nos à pessoa ou situação em causa, precisamente pelo apego gerado. Podemos conversar, contrapor argumentos, sem fazer disso uma luta de poder, instrumento de afirmação individual ou montra de reconhecimento social. O ideal será observarmo-nos e tentar perceber se procuramos subjugar ou ceder, na dinâmica comunicacional, e com que objectivo. O desafio é manter um diálogo consciente, em que observamos o fluxo de emoções desencadeadas, notando o corpo, a respiração e escutando a própria voz quando falamos e o interlocutar, quando esse se expressão. Nos relacionamentos afectivos o “deixa livre a quem amas”, máxima sobejamente popular, será uma das melhores ilustrações da aplicação de desapego. Qualquer relação se torna insalubre a partir do momento em que há dependência ou co-dependência, o que costuma ser subproduto de apego a par de outros factores. Desenvolvemos apegos conscientes e, sobretudo, inconscientes ao “positivo” e ao “negativo”. No contexto da relação isso é particularmente visível. O “vício de sofrer” será um exemplo paradigmático de um apego “negativo”: quando a pessoa se vincula a um padrão abusivo de relação para, consciente ou inconscientemente, manter viva uma percepção de controlo sobre o mundo. “Sair da zona de conforto”, como tanto se alardeia, é, sobretudo, desconstruir os padrões psicológicos a que nos agarramos para alimentarmos a sensação de estarmos no controlo da situação. A aplicação de vairāgya no exercício contemplativo, pode ilustrar-se no exemplo do praticante que se desapega dos meios da prática, não os confundindo com o fim.
Não será exagero dizer que o entendimento e consecução de vairāgya representa um dos pilares fundamentais de qualquer soteriologia. Com efeito, para os estóicos a suma qualidade do sábio seria mesmo apatheia.
Joel Machado
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