(Ruy Freire Filho) As Plantas no Yoga

Debaixo das folhagens, flores, frutos, ramos, raízes, caules e troncos   da  densa flora que cobre a geografia sagrada (Bharat avarsh)  do subcontinente indiano,  um gigantesco panteão de santos , elementais, deuses e deusas se abriga.  Não à-toa, as plantas, de acordo com  os shastras (escrituras sagradastransformam a energia que transita entre o cosmo e o planeta, que se dispersaria aleatoriamente,  no combustível  da própria existência. Segundo o Atharva Veda os vegetais capturam o alento vivificador (Prana) esparso na atmosfera e, como fios condutores, espalham a vida na  natureza (prakriti).

 

“1-Nos curvamos ao Prana , ao qual o mundo é submisso, que é o senhor de tudo, e onde tudo se sustenta.

2-Nos curvamos, ò Prana, ao rugido de teu vento, nos curvamos, ò Prana ao teu trovão, nos curvamos, ò Prana aos teus raios, nos curvamos, ò Prana a tua chuva. Quando o Prana faz seu chamado ás plantas com seu trovão, elas são fecundadas, concebem, e produzem abundancia.

3-Quando a estação chega  e o Prana convoca ruidosamente as plantas, todas as coisas sobre a terra se rejubilam.

4-Quando o Prana rega a grande terra com chuva, os animais celebram: ” a força, de fato, agora vamos obter. “

5-Quando são regadas pelo prana  , as plantas em conjunto proclamam:” Você de fato prolongou nossa vida e nos fez fragrantes”

16- As plantas sagradas (atharvana), as mágicas (angirasa), as divinas   e aquelas produzidas pelo homem, se desenvolvem, quando tu Prana, acelera  seu  movimento.”

 

Nos Upanishades, coletânea de textos metafísicos, o  Prana é a essência e força motriz da vida consciente (Jiva).  “Pelo prana como que por um cordão, este mundo, o outro mundo, e todos os seres são mantidos juntos” ( Brhadaranyaka Upanishad )  ou, como explica  o rishi  Pippalada, a um discípulo “ O Prana nasce da Alma do Universo (Atman) mas como um homem e sua sombra, o Atman e o prana são inseparáveis. Ele entra no corpo pela ação da mente (manas)”(   Prasna Upanishad  ).

Além do alento (Prana) que sustenta a organicidade da existência, as plantas  contem a semente da consciência (cit). Na visão  das escrituras, antes de atingir o plano humano e estar apto a transcender ao seu nível mais elevado através do Yoga, o ser consciente  (Jiva) passa por 84 milhões de estágios (nascimentos), na  forma de  vegetais, animais aquáticos, insetos, passáros e animais superiores.  Dotado da capacidade de capturar a força  que a natureza  dispersa ao acaso  na forma de raios, ventos, trovoadas e chuvas, através das  folhas, e transformar o mundo mineral inerte em vida com suas raízes, o reino vegetal ao aglutinar a natureza expansiva da energia (Shakti) à contenção e limites impostos pelos elementos grosseiros da matéria  (mahabhutas), molda as primeiras estruturas da consciência.

A flora  exposta a toda a sorte de percepções quando interage com diversos solos, topografias e climas,  cria  a diversidade inicial  dos padrões  mentais (cit). O sábio( rishi) Bhrigu, no épico Mahabharata,  esclarece  Bharadhvaja que as plantas são detentoras de todos os  sentidos: podem sentir calor, ouvir sons, perceber  odores , degustar  o sabor da agua que absorvem, e  mesmo experimentar a  visão quando  buscam a luz.

Com  prana e cit (consciencia ) sendo os dois pilares do caminho (sadhana) do yoga, a flora  estaria fatalmente emaranhada na via da libertação (moksha) . Assim, na  primeira obra que compila o yoga como sistema, os Aforismos de Patanjali , moksha é alcançado  pelo controle da consciência (cit)  através  do prana disciplinado; e  no primeiro verso de do  quarto e último capitulo que trata sobre a transcendência (Kaivalya), Patanjali  faz  referencia ao uso de ervas  :

 

“Os siddhis  (poderes) podem ser alcançados por nascimento, por ervas medicinais (auşadhi), por mantras, pelo Tapas ou por samadhi”

       

rishi (sábio) Vyasa ao comentar  esta passagem (Yoga Bhasya), esclarece que ervas podem ser usadas para a transcendência. Mas faz uma advertência.  O conhecimento das ervas é uma ciência de domínio dos titãs  (asuras), seres míticos inimigos dos deuses (devas),  que muitas vezes põem seus conhecimentos ao alcance dos homens, dando a eles independência da intervenção divina. E o poder humano, desregrado da vigilância divinal, pode muitas vezes desandar  em impulsos mundanos.

 

“Ele descreve a perfeição alcançada com ervas. Um ser humano que por uma razão ou outra alcança a mansão dos asuras, e quando se utiliza dos elixires trazidos a ele por donzelas e asuras, alcança a ausência da idade e a imortalidade e outras perfeições (siddhis). Ou (esta perfeição pode ser alcançada) pelo uso de um elixir da vida neste mundo. Como por exemplo o sábio Mandavya, que morou nos Vindhyas e fez uso dessas poções.”(Yoga Bhasya, Vyasa)

 

Comentários posteriores como o do século lX de Vācaspati Miśra , compartilham esta visão, e  intercambia o termo ervas mestras (ausadhi) com alquimia (rasayana)  e declara que um um homem pode ser iniciado ”ao atrair donzelas asuras”. No Bhagavatta Purana o termo alquimia ( rãsa /rasayana) é utilizado como o das ervas medicinais encontradas “na morada dos Asuras”.

Elemento central  no ayurveda (medicina védica)   na construção da saúde e bem-estar,  o vínculo das ervas  com o mundo dos Asuras, seres muitas vezes mais dominados por impulsos do que por discernimento,  levantou a suspeita de que  o uso deste recurso seria  um percurso  perigoso no yoga , principalmente na ótica do bramanismo ortodoxo. E até para doutrinas que questionam a autoridade dos Vedas como o jaínismo e budismo theravada, a cautela  deve  ser observada.  O sábio jainsta Hemchandra chega a colocar o yoga como uma via para prescindir do uso de ervas, mantras e de ferramentas  próprias ao  tantra.

 

“Yoga (ou as três jóias do Jainismo) é (como) um machado afiado para o emaranhado das trepadeiras de todas as calamidades. È uma forma sobrenatural para se alcançar a felicidade e libertação sem (o uso ) de ervas medicinais (mūla-estar enraizado, de plantas e árvores), encantamentos (mantras) ou (ensinamentos) tântricos (tantra).“ (Yogasastra Hemchandra 1.5)

 

Paradoxalmente, na contra-mão,  a tradição ortodoxa encrava na raíz da transcendência uma  planta . Trata-se do  soma, planta da qual pouco se sabe,  elemento chave  do ritual védico, o mais poderoso  instrumento das revelações,  louvado em todo Sama Veda e em todos os versos do nono livro do Rg veda (114 no total):

 

“O soma é um deus; ele cura

as mais agudas doenças que afligem o homem

ele cura os enfermos, alegra os que sofrem,

estimula os fracos, afasta os temores;

Aos frágeis ele incandesce com fogos marciais,

A alma da terra aos céus ele eleva

São tão grandes e assobrosos seus dons,

O homem sente o deus em suas veias

E gritam em toadas altas e exultantes

Nós sorvemos o brilho do soma

E  nos tornamos imortais

Nós entramos na luz

E conhecemos todos os deuses

Que mortal agora pode nos ferir

Ou inimigo  ainda nos humilhar?

Através de vós, sem temores, Deus imortal

Nós voamos alto.” (Rg Veda)

 

A identidade vegetal  do Soma é no entanto  desconhecida.  Em seu tratado de medicina Charaka descreve: “a rainha das ervas conhecida como Soma, tem quinze nós no estame” lançando a suspeita sobre a Efedra (Asclepias acida). Outros conjeturam que os seis lados côncavos das abóbodas dos templos de Ellora revelam que a Amla (Emblica officinalis) é o soma.  Indiferentes à  sua classificação botânica, os textos (shastras) indicam que juntamente com Indra o deus da chuva e rei dos devas (deuses), de Agni (deus do fogo), o deus/planta Soma formava a trindade central do culto védico, sendo disputado por devas e asuras.

Se o papel da flora no caminho da libertação e transcendência teve sua importância podada pela casta sacerdotal , nas camadas populares, onde as tradições anímicas e femininas  tem raízes, ela manteve  sua preponderância, e nas tramas do pensamento tântrico floresceu em sacralidade, associada incialmente aos rituais e cultos às dríadas (yakshinis), elementais femininos regentes de inúmeras espécies botânicas. E foi,  principalmente através das dríadas (yakshinis), ninfas moradoras das árvores, que os vegetais brotaram em vários caminhos do yoga.  Manuscritos medievais  se referem as  yakshinis como  um caminho de aprimoramento espiritual (yakşinī-sadhana ),  através  de  poções capazes de um magnetismo tão poderoso que atraí  a própria deusa (Bhairavi)  no auxilio da transcendência do aspirante (sadhaka). Estas  yakshinis são denominadas yoginis,  e gradualmente muitas viram shaktis (matrizes de potencia) e mesmo devis (deusas).

Crenças populares indianas vêm as plantas como intercessoras entre os astros celestes e os tecidos corporais.  A cevada por exemplo media a relação do sol com os ossos, enquanto o grão de bico viabiliza a interação de Júpiter com a gordura. Assim, transmutadas em tecidos corporais (dhatus) as yoginis estão presentes nos no sistema de chakras (vórtices energéticos que transcrevem o plano sutil para o mundo tangível  ). Na obra sobre chakras  mais popular no ocidente, o Sat-chakra-Nirupana,  assentada no  muladhara,   a yoguini Shakini controla os ossos; no  svadhisthana  Kakini, domina a gordura; no manipura Lakini rege  os músculos; no anahata  Rakini, o dirige sangue; no vishuddha  Dakini  administra o plasma; no  ajna  Hakini governa os nervos; no  sahashara  Yakini gere os tecidos reprodutivos.

Entre os Nathas,  ascetas que sistematizaram e propagaram o hatha yoga,  os vegetais  são reverenciadas por dois de seus principais patronos. O lendário Matsyendra  que traz para a humanidade o conhecimento do Hatha Yoga ao entreouvir as explanações que  o deus Shiva dá à sua consorte Parvatee sobre este caminho, é um adorador das sessenta e quatro yoginis /yakshinis /plantas divinas (divyāusadhis) . No seu sistema de oito chakras com oito pétalas,  cada pétala  é  regida por uma divyāusadhis/yogini , e muitas destas plantas divinas são mencionadas em sua obra Matsyendra Samhita. Gorakhnath, seu discípulo, e principal difusor do hatha yoga, expõe como as divyāusadhis (plantas divinas), nascem nos locais onde Shiva se une à sua consorte (shakti)  e se transformam mediante processos alquímicos nas yoginis (Goraksha Samhita Bhūtiprakarana).

Quase toda flora do subcontinente indiano  tem um patrono divino, ou santo. Vishnu  está  associado à figueira e o basílico , enquanto Shiva  está ligado  à   Bilva  (Aegle marmelos ) e ao Rudraksha (Elaeocarpus Ganitrus Roxb). Via de regra estes vegetais são apenas os indicadores botânicos da presença dos respectivos  regentes, porém produtos que vão das flores,  folhas, cascas, sementes se integram com frequência ao próprio culto à divindade. No plano mítico, Shiva  recorre aos efeitos ansiolíticos de uma planta para suportar a perda da esposa Sati, enquanto Vishnu vai além e contraí matrimônio com Tulsi, a alfavaca (Ocimumum sanctum).

A relação  entre  o sagrado e o botânico  é ainda mais frutífera entre as deusas e entidades femininas. Na versão Shakta  (culto às devis-deusas) do hinduísmo, as deusas são identificadas pelas árvores em flor. A  jaqueira representa a deusa Shashti; a palmeira, Badhrakali; a bananeira ou a cadamba , Kali; , o tamarindo , Kubjika e Laxmi está no lótus. A sombra das árvores são consideradas sagradas, e debaixo delas ocorrem processos mediúnicos. A anatomia de árvores e plantas , suas emissões,  correspondem  ao corpo e humores  da mulher e da deusa. As flores são a vulva da deusa com o poder de engendrar, multiplicar, vivificar, materializar.  Plantas enredam  a trama  do plano divino ao humano. Revelam os mecanismos e os processos que controlam o mundo da matéria, e concedem um conhecimento velado às percepções corriqueiras.  É através de  árvores, trepadeiras, raízes, e parreiras que a  deusa Kubjikā (Nepal)  transmite  seus ensinamentos.

A popularidade de  yakshinis, yoginis, shaktis e deusas levaram à  inevitável associação da flora à feminilidade. E não só a ligação de yoginis/devis orientais com flores e frutos, como de Eva com a maçã no ocidente, apontam as plantas na rota que vai da tentação à perdição. Em tradições predominantemente masculinas, fatalmente estes cultos acabam sob suspeição: os vegetais, fortemente associados à materialidade, não podem ser um caminho para a libertação (moksha).

 

“Krishna  disse: Afirma-se que existe uma figueira-da-bengala (peepal) imperecível, cujas raízes ficam para cima e os galhos para baixo e cujas folhas são os hinos védicos. Quem conhece esta árvore é um conhecedor dos Vedas.

2. Os galhos desta árvore se estendem para baixo e para cima, nutridos pelos três modos da natureza material (gunas). Os brotos são os objetos dos sentidos. Esta árvore também tem raízes que descem, e estas estão atadas às ações fruitivas da sociedade humana.

3-4. Não se pode perceber a verdadeira forma desta árvore neste mundo. Ninguém pode compreender onde ela acaba, onde começa, ou onde ela se alicerça. Mas com determinação deve-se derrubar com a arma do desapego esta árvore fortemente arraigada. Em seguida, deve-se procurar aquele lugar do qual ninguém volta após ter chegado lá e render-se a Brahman  de quem tudo começou e de quem tudo emana desde tempos imemoriais” Bhagavad Gita (capítulo XV, versos 1, 2, 3, 4)

 

Esta identificação da figueira (peepal) com o mundo transitório, material, de nascimentos e mortes, não é definitiva. Inconformada com a linearidade cartesiana dos dogmas, a cultura hinduísta se mimetiza na diversidade da natureza, e resgata o mito do peepal em uma parábola onde esta árvore abriga a própria Trimurti (Trindade divina hinduísta), sendo as raízes Brahma, o tronco Vishnu e as folhas Shiva.

Em uma tradição onde o mundo orgânico está fortemente  atrelado ao mundo sutil e troncos/estames/flores/frutos/raízes/cascas/folhas,  podem sanar  e  harmonizar o corpo,  este mesmo efeito se projeta também sobre um plano metafísico. E assim, mesmo com o alerta  de várias escolas sobre os riscos de seus discípulos caírem dos galhos escorregadios deste percurso botânico,  a  árvore do yoga mantem uma boa parte de suas raízes cravadas no reino vegetal.

 

Ruy Alfredo de Bastos Freire Filho

Diretor do Centro de Estudos de Yoga Narayana, em São Paulo/Brasil


(Árvore como Culto, Ruy Freire Filho)

 

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