Kénōsis, do grego, significa “esvaziamento”, “esgotamento”, “vácuo”, portanto, remete para a ideia de “algo que se exaure” ou o “acto de exaurir”.
Na Teologia e Mística Cristã, kénōsis representa o esvaziamento do si-próprio perpetrado por Jesus Cristo, ao abdicar da vontade pessoal em detrimento da vontade de Deus, á qual se tornou inteiramente afim. Acontece quando entrega o seu “destino” às mãos plenipotentes de Deus, para o que der e vier. Esta ideia é epitomizada por São João da Cruz, no seu trabalho Noite Escura da Alma, onde expõe a senda transformativa do crente à “imagem de Deus”.
O senso comum fala frequentemente desta “noite escura da alma”, mas o que significa!? Onde entra kénōsis na equação? A “noite escura da alma” será o processo que leva à morte do ego, implicando toda a percepção de dor inerente a tal. Entenda-se que alegoricamente o ego, auto-conceito, sentimento de si, seja como for, funcionará como uma entidade autónoma que quer existir e, tendo medo de perecer, fará tudo o que estiver ao seu alcança para se manter vivo. Em rigor, o ego será uma constelação de entidades que se assumem mais ou menos visíveis, consoante o invoquem as circunstâncias internas e externas. A prática espiritual acarreta a sublimação dessas entidades que formam a personalidade e com a qual o sujeito estabelece um “pacto” de identificação.
Mantendo a alegoria, a questão é que amiúde essas entidades egóicas são sub-reptícias ou funcionam pelo logro. Por exemplo, as mortificações terão tudo para ser um engodo que o ego encontra para se manter vivo. Qual o nexo da pessoa se cruxificar na Páscoa, para emular o sofrimento de Cristo, ou meditar rodeada de brasas sob o sol de meio-dia indiano, para “queimar” karma? O folclore budista narra inúmeros recontos de submissão ou humilhação extrema, como ingerir urina e fezes alheias, bem como lamber feridas de outrem, literalmente. Provavelmente, não há nestes casos morte nenhuma do ego, apenas uma alternância de narrativas, passa-se de um eu-pecador para um eu-liberto. Ora, mantendo-se o eu, não haverá Libertação! Aliás, frequentemente geram-se egos ainda mais insuflados, o chamado ego-espiritual, por se cair na crença de que se é superior aos demais ou Iluminado.
É provável que o desafio inerente a kénōsis esteja, grandemente, na banal vivência do dia-a-dia, na estória de vida pessoal e colectiva, acima de tudo, nas dinâmicas relacionais. Mergulhemos no adágio “deixa livre a quem amas”. Haverá maior provação de esvaziamento do si-próprio do que pôr em prática, incondicionalmente, o significado mais profundo da frase anterior!? Notemos que isto é até válido para morte dos que nos são próximos. Fazer o luto, essencialmente, é deixar ir! O que dizer de aceitar as áleas da vida? A recuperação de danos físicos resultantes de um acidente? Uma aspiração profissional ou pessoal que nunca se realizou, por mais árduo que tenha sido o nosso esforço nesse sentido? A aceitação de uma característica física que, por preconceitos sociais e culturais inculcados, achamos feia ou diminuidora? A solução será deixar morrer as entidades que alimentam tais equívocos. Isso não implica lutar com elas, pelo contrário só as fortaleceria mais. Implica observá-las meditativamente, até se exaurirem. Porque qualquer entidade egóica, pensada ou emotiva, tem a sua vitalidade dependente da atenção. Não recebendo atenção ou identificação, ela esgota-se e morre. Então, kénōsis não será uma mortificação, diríamos, antes a conquista da capacidade de navegar estavelmente quando as águas estão tranquilas, mas também quanto estão turbulentas. Será a rendição total e inequívoca.
Juntando conceitos, kenosis será a porta de entrada à metanoia. Isto é, a transformação é tão mais profunda, quanto maior e incondicional for a rendição do sujeito que leva a morte do ego e seus subsidiários. Aqui estará parte do ideal de Cristo.
Joel Machado
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