(Artigo de Reflexão) vairāgya, viveka e abhyāsa | desapego, discriminação e perseverança

Comecemos por assumir que será insensato isolar conceitos porque, em rigor, funcionarão todos dentro de um espectro comum, em inter-relação. Portanto, a pretensão de se traçar fronteiras conceptuais estanques será contraproducente e inviável. A observação deste facto sucede, frequentemente, quanto procuramos exemplos de comportamentos que se encaixem em um ou outro conceito abalizado e, de súbito, percebemos que cabem numa pluralidade.

Tradicionalmente, vairāgya, o desapego, viveka, o discernimento, e abhyāsa, a perseverança, são conceitos que surgem associados. Acaba por ser mais fácil percebê-los na relação triangular estabelecida do que individualmente, sobretudo quando procuramos aplicações e exemplificações dos mesmos.

Nada melhor que o escrutínio de hipotéticas situações para ilustrar o pressuposto avançado. Por exemplo, imaginemos um dado praticante de Yoga explorando a sua relação com os meios e o fim da prática soteriológica. Um dilema comum passa pela capacidade ou incapacidade em entender que a prática é contínua, não ocorrendo unicamente no estúdio com os pés sobre o tapete. Parece que inúmeras vezes se gera um apego à ideia de que é quando se está na sala de prática que “tudo de mau desvanece”, que “se encontra a paz”. Portanto, há uma separação entre o momento do yoga e o do não-yoga, assumindo-se que o primeiro traz conforto esporádico ou pontual entre a réstia de vida que é má! Isto é uma falácia, enorme! O Yoga propõe algo bem mais alargado que isso: da vigília ao sono, literalmente, tudo é prática; e a ida ao estúdio de Yoga é um treino para se continuar a aplicar os ensinamentos do Yoga no continuum da vida quotidiana! Outras esparrelas comuns serão: arrogar que o “meu” yoga é melhor que o “teu”, ou o “teu” guru vale menos que o “meu”; o apego à indumentária, ao tapete, ao cinto, ao bloco, ao espaço onde se pratica, ao método e professor. Tudo isto são exemplos de situações em que não há vairāgya, desapego, por falta de viveka, discernir o essencial do ilusório. Devem, por isso, ser contrariadas: largar utensílios, pontualmente praticar em outros lugares com outros professores, desconstruir as ideias feitas com relação ao que se considera ser a prática de Yoga. Não confundamos os meios que nos permitem chegar ao fim proposto pelo Yoga!

Reconhecendo os lapsos exemplificados, por via da discriminação e do desapego, entra abhyāsa, a perseverança, ou seja, repetir e aplicar consecutivamente a fórmula lúcida de entendimento. Aqui entrará a questão do Yoga enquanto ciência contemplativa ou entretenimento. A ciência contemplativa requer “sangue”, “suor e “lágrimas”, falando em bom português. O entretenimento quer prazer, um placebo, um lenitivo. Isso exclui o fel que inevitavelmente abhyāsa inocula no ego. No entretenimento também há esforço e repetição, porém não se trata de abhyāsa, pois, o que está por detrás não é uma busca soteriológica visando a desidentificação total com o ego, condição sine qua non para a validação desse conceito. Novamente, requer-se viveka e vairāgya, ficando assim claro o modo como esta triangulação é dinâmica, retroalimentando-se positivamente, quando entendida, ou negativamente, quando desentendida.

Por este motivo, uma boa maneira de testarmos a nossa proficiência, neste triângulo de conceitos, passa por nos envolvermos em práticas, com ou sem “aparência” de yoga, em que a taxa de sucesso à luz do ego é fraca, logo pouquíssimo atractiva. Um exemplo!? Regenerar solos desertificados! Plantar e cuidar de árvores! Principalmente se forem de espécies de crescimento lento, sabendo que só os nossos netos e bisnetos “desfrutrão” da sua bênção! É preciso desapego, discriminação e perseverança para aceitar que de cem sementes, dez germinarão e talvez uma resulte numa árvore que não veremos adulta, porque entretanto já teremos morrido!


Joel Machado

 

(Kṛṣṇa ensinando Arjuna | Foto/Créditos: Mahavir Prasad Mishra)

 

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