Haṭha: Técnicas de Purificação (Kriyā-s)

A partir do Haṭhapradīpikā e textos do Haṭha pós-Clássico, ou seja, início do séc. XV, encontramos referências a uma série de técnicas preliminares de limpeza que visam remover impurezas grosseiras do corpo, como gordura e muco, curando uma variedade de doenças concomitantes, e capacitando o praticante à prática de prāṇāyāma.Com efeito, estas tornam-se emblemáticas do Haṭha, apesar de se acreditar serem bem anteriores, como veremos mais à frente.

As Purificações nos textos de Haṭha Clássico

O Haṭhapradīpikā atribui ao conjunto de técnicas que apresenta a designação de ṣaṭkarma, “as seis acções ou processos [de purificação] ” (1) , sendo essas dhautī, basti, netī, trāṭaka, naulī e kapālabhātī. Apresenta ainda uma outra técnica, cunhada gajakaranī (“Técnica do Elefante”), pelo que em rigor são sete os processo de purificação que inclui.


A Gheraṇḍasṃhitā alarga o leque de técnicas, incluindo quatro versões de dhautī (interno, dental, peitoral e rectal), um basti “seco” e três versões de Kapālabhātī. De certo modo espectaculariza o cenário, ao prescrever que para uma das versões de dhauti, seja retirado o intestino pelo ânus, lavado com água, e reintroduzido.

(22) Imerso em água até ao umbigo, o yogī deve retirar o seu canal śakti [intestino?]. Deve lavar o canal com ambas as mãos até que sejam removidas as impurezas, depois enxaguá-lo e volta a inserir no estômago. (2)

O Haṭharatnāvalī de Śrīnivāsa ensina oito técnicas, ao acrescentar o cakri, uma limpeza do esfíncter anal (3), e critica abertamente o Haṭhapradīpikā por não incluir esse processo.

(27) No Haṭhapradīpikā [existe o seguinte verso]: ‘Dizem qu existem seis técnicas de purificação, basti, dhauti, neti, trāṭaka, naulī e kapālabhātī.’ Como é que tal ensinamento pode ser tido em consideração quando não se inclui cakri? Esse ensinamento está errado, porque vai contar o propósito [de instruir acerca das técnicas de purificação]. Esfoçar-se por rejeitar o que e refutar o que é ensinado no Haṭhapradīpikā seria como quebrar o corpo de alguém ao escalar um elevado pico. Eu desistirei: não há sentido em cortar unhas com um machado.(4)

Śrīnivāsa “inova” atribuindo a cada uma dessas técnicas a função de purificar cakra-s em particular: cakri, por exemplo, fisicamente permite a limpeza do ânus, subtilmente, a purificação de o cakra de base (ādhāra); vajrolī, que é tido como processo de purificação e não como mudrā, como método de purificação do cakra do pénis. Mallinson e Singleton , referem que este é provavelmente uma das primeiras instâncias em que se atribui a uma técnica física a capacidade de agir sobre cakra-s (o subtil), em detrimento de técnicas meditativas. O Jogpradīpakā, do séc. XIX, também se destaca pela espectacularidade, ao propor um processo denominado mūlaśiśnaśodhana, “limpeza do ânus e do pénis”, e que consiste em absorver água pelo ânus e expeli-la pelo pénis, o que é anatómica e fisiologicamente impossível – se tomarmos à letra, obviamente. Esta questão da espectacularidade no modo como algumas técnicas são apresentadas, a par da críticas entre autores/textos, pode traduzir um proliferação competitiva neste particular, tal como aconteceu com āsana.

Origens

Apesar do Haṭhapradīpikā constituir a primeira referência textual conhecida, as técnicas serão bem anteriores. Concretamente, pensa-se que o termo ṣaṭkarma anteceda em muito o período do Haṭha Clássico, podendo referir-se a um conjunto de deveres bramânicos ou, em tradições tântricas, a rituais para curar doenças e controlar outras pessoas. Isto poderá indicar que Svatmārāmā, além do propósito integrador e compilador, terá também tentado absorver estas práticas purificatórias para o espaço do Haṭha. Outra questão apontada na mesma linha de argumentação, tem a ver com a antiguidade da técnica do nauli: ora, o vajrolī executa-se com nauli e é descrito no Dattātreyayogaśastra, 200 anos antes da compilação do Haṭhapradīpikā.

Em suma, esta questão de até onde e de onde remontam estes processos de purificação, está ainda apor apurar com maior detalhe.



Joel Machado



Notas
(1)Também é comum, actual e principalmente em círculos tradicionais do Yoga, designar esta técnicas simplesmente por kriyā-s, novamente remetendo para a ideia de “acção” ou “execução”.
(2) Traduzido a partir do inglês James Mallinson e Mark Singleton in Roots of Yoga, 2017, pág 74.
(3) Técnica que consiste em inserir um dedo no ânus e rodá-lo até ao relaxamento dos esfíncteres anais.
(4) Traduzido a partir do inglês James Mallinson e Mark Singleton in Roots of Yoga, 2017, pág 78.
(5) Roots of Yoga, 2017.



Bibliografia

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