O Mahābhārata, juntamente com o Rāmāyaṇa, é um dos grandes Épicos Sânscritos da Índia Antiga, formando a Itihasa ou “História” Hindu (onde algumas fontes também incluem os Purāṇa-s). Recebe amiúde a designação de “Quinto Veda”, um sinal do prestígio e vulto que lhe são atribuídos. Narra a Guerra de Kurukṣetra levada a cabo pelos Kaurava-s e Pāṇḍava-s que, apesar dos laços familiares, se envolvem numa violenta e pérfida contenda pela disputa da Sucessão.
A dimensão quantitativa e qualitativa deste Épico é inadjectivável, versando uma miríade de temas. Yoga, Sāṃkhya e Vedānta, ora se sucedem, ora se imbricam no discurso metafísico e filosófico do Épico, segundo um enquadramento que, remontando a raízes pré-Budistas, parece ser pós-Budista. O Yoga é especialmente focado em duas secções distintas e que se acredita serem inserções posteriores ao corpo do Mahābhārata (1): a Bhagavadgītā e o Mokṣadharma.
A Bhagavadgītā, ou “Canção do Senhor”, será um dos registos textuais mais antigos da Tradição Vaiṣṇaiva, senão o mais antigo, cuja principal marca distintiva é a adoração ao Divino na forma “terrena” de Viṣṇu, concretamente Kṛṣṇa avatāra (literalmente “descida”, significando “manifestação” ou “encarnação”). Constitui um diálogo entre Kṛṣṇa e o seu discípulo, o Príncipe Arjuna que num cenário de iminente batalha sente reserva e hesitação face ao sentido (ou falta de sentido) da guerra. A partir daí, ao longo de dezoito capítulos, desenvolve-se um profundo ensinamento de Yoga. A proposta central de Kṛṣṇa na Gītā passa por atingir um equilíbrio entre a acção ética-religiosa convencional e a prática contemplativa, mormente, as diferentes metas ascéticas que eram contemporâneas. Isto é, o caminho do Yoga consiste essencialmente no realinhamento da vida quotidiana de qualquer praticante pela bitola do Ser Transcendental; tudo o que é perpetrado, do mais ínfimo gesto à mais elaborada empresa, deve ser executado à luz da identificação com a (ou reconhecimento da) intrínseca Natureza Divina de cada qual (e cada coisa). Nesse sentido, a vida global de alguém deve tornar-se um contínuo Yoga, o que pode ser designado de Karma Yoga. Subsequentemente, mas em profunda associação, ocorre o ensinamento de Bhakti e Jñāna Yoga: concentradamente, a adoração ardorosa do Divino, ao estilo da Mística, e o estudo intelectual aprofundado rumo à gnosis. Globalmente, o Yoga será uma síntese contínua destas três formas de yoga; a sua prática levará à Libertação. Histórica e Culturalmente, a Gītā, pode representar uma tentativa de integrar diversas correntes de pensamento contemplativo prevalentes no espaço do Hinduísmo, em pleno Período Épico (1000 e 100 a.C.), portanto previamente ao auge da sua cristalização. Medeia o ritualismo sacrificial do sacerdócio ortodoxo com os ensinamentos inovadores encontrados nas doutrinas esotéricas das primeiras Upaniṣad-s, assim como nas heterodoxias do Budismo e do Jainismo. Na Gītā o Yoga não é formalmente sistematizado como nas subsequentes Maitrāyaṇīya Upaniṣad e no Yogasūtra-s, porém, todos os seus princípios estão presentes.
O Mokṣadharma, terceiro capítulo do Śāntiparvam ou “Livro da Paz”, décimo-segundo do Mahābhārata, é um texto algo sincrético na medida em que mistura elementos de várias procedências, o que fica patente nos conteúdos, construção e vocabulário. Acredita-se que terá sido composto por volta do séc. IV a.C. e, numa frase, propõe um conjunto de preceitos, acções, comportamento e regras, o dharma, para se obter mokṣa, a Libertação. Evoca uma série de Tradições que mantendo alguma relação revelam igualmente contrastes: o Vedānta, representando as Escolas Ortodoxas Brâmanes; Śramaṇa-s e Budistas, como se pode supor pela utilização do termo nirvāṇa; o culto Pāśupata e a religião Pāñcarātra enquanto formas percursoras do Śaivismo e Vaiṣṇaiva, respectivamente; o Sāṃkhya e o Yoga pré-Clássicos. No Mokṣadharma encontramos um corpus de ensinamentos com um considerável grau de elaboração. No que respeita à prática propriamente dita do Yoga, há uma ênfase basilar nas fundações morais inerentes ao praticante, listando-se aquelas que devem ser as pedras fundamentais (humildade, honestidade, desapego, não violência, compaixão e indulgência) e os inimigos a evitar (medo, ganância, raiva e luxúria), saco onde se colocam os super-poderes (siddhi-s ou vibhūti-s) derivados da prática. Propõe um ideal de dieta, mencionado inclusive o jejum, e um ambiente propício. Contextualizando a sua aplicação em função da noção e distinção de cinco prāṇa-s ou “correntes vitais” circulando no corpo, destaca o valor do prāṇāyāma enquanto via de preparação da mente para chegar a pratyāhāra, a inibição ou retracção sensorial, e posteriormente ao Nirodha Yoga (um conceito tido como comum nas Escolas de Yoga pré-Clássico e definido como a eliminação progressiva dos conteúdos mentais supérfluos até se chegar novamente ao Self ou Si Transcendental). Neste processo dhāraṇā (concentração) e dhyāna (meditação) formam os restantes veículos imprescindíveis. Fala-se também numa espécie de Jñāna Yoga atingido por via da concentração em objectos progressivamente subtis. Em suma, atendendo às profundas semelhanças com o Yogasūtra-s de Patañjali, o Mokṣadharma é tido como a pedra fundamental para a sistematização e ascenção do Yoga Clássico.
Entre a Bhagavadgītā e o Mokṣadharma, Feuerstein (2) fala ainda da Anugītā, igualmente uma inserção posterior ao Mahābhārata, definindo-a simultaneamente como uma “imitação” (eventualmente das mais antigas) e resumo da Bhagavadgītā, apresentando como principal diferença a omissão ou supressão do aspecto Bhakti da prática. Verifica-se, então, um enfoque privilegiado do Jñāna Yoga, logo o potencial de reconhecimento do Divino mediante a gnose. Pode-se especular que este tipo de abordagem terá sido percursora da tentativa de tirar relevo ao devocionalismo “excessivo” a Kṛṣṇa presente na Bhagavadgītā, uma tendência que vem a ser hegemonizada por Śaṅkara na institucionalização do Advaita Vedānta pela valorização do Jñāna Yoga.
Joel Machado
Notas
(1) Tese defendida por J. Brockington (2003).
(1) Tese defendida por J. Brockington (2003).
(2) The Yoga tradition, 1998.
Bibliografia
Brockington, John (2003) The Sanskrit Epics in Flood, Gavin, ed. (2003). The Blackwell Companion to Hinduism. Malden, MA: Wiley-Blackwell.
Feuerstein (1998) The Yoga tradition. Phoenix, Arizona. Hohm Press.
Bibliografia
Brockington, John (2003) The Sanskrit Epics in Flood, Gavin, ed. (2003). The Blackwell Companion to Hinduism. Malden, MA: Wiley-Blackwell.
Feuerstein (1998) The Yoga tradition. Phoenix, Arizona. Hohm Press.
(O combate entre oe exercitos Pandava e Kaurava | Foto/Créditos: Domínio Público)
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