Para uma análise genérica dos diferentes Períodos Históricos do Yoga, poderá ter-se em conta um conjunto de aspetos, dos quais se referirão os que, para o caso, parecem mais relevantes. Primeiro, não é fácil definir datas, nem parecerá sensato a pessoa ater-se em demasia aos intervalos definidos, por inúmeras razões, destacando-se a dificuldade em datar os achados arqueológicos e produção textual que lhes serão contemporâneos. De facto, é quase unânime reconhecer que as versões textuais de vários textos basilares da Cultura Hindu, desde os primórdios Védicos, já eram oralmente transmitidos (paramparā) muito antes da redacção escrita e que ao longo desse processo foram sendo sujeitos a alterações mais ou menos profundas. Segundo, lembremos também que existem o Yoga Hindu, Budista e Jaina, pelo que aqui se falará quase exclusivamente do primeiro. Nesse sentido o enquadramento é definido com base no movimento de formação e cristalização do Hinduísmo ou Sanātana Dharma. Terceiro, de frisar ainda alguma contradição entre o que dizem os recontos tradicionais, engalanados pelo mito e, mais tarde, pelo nacionalismo, e as versões académicas, inicialmente tomadas por algum preconceito de cariz colonial, mas actualmente tendendo ao equilíbrio.
A Antropologia, Religião Comparada, Indologia, Estudos Orientais, Filologia Sânscrita, sob a batuta de figuras como Surendranath Dasgupta (1), Mircea Eliade (2), Elizabeth de Michelis (3), Feuerstein (4) e, mais recentemente, James Mallinson e Mark Singleton (5), entre outros, propuseram várias linhas cronológicas para enquadrar a génese e evolução do Yoga que, grosso modo, coincidem. Neste artigo, sem optar por uma linha específica, procurar-se-á integrar elementos das várias propostas, dentro do que parecerá fazer sentido, numa fase pré-escrita e, depois, numa sequência de fases caracterizadas pelo tipo de produção textual que as tipificam.
Assim sendo, a tese de que as origens do Yoga se encontram nas Tradições Xamânicas prévias e contemporâneas à Civilização do Vale do Indo parece ter alguma sustentabilidade. Fundamentalmente porque há inúmeros elementos do Xamanismo que vieram a ser encontrados (e ainda hoje se verificam) na teoria e prática do Yoga: metáforas e alegorias de base (o desmembramento e voo rituais, aquisição de super-poderes, entre outros), geração de calor corporal e posturas físicas. Deste Período, existem essencialmente registos arqueológicos, sendo o celebre Selo de Paśupati um deles, apesar de todo o folclore especulativo que se tem gerado ao seu redor. Este Período, que se poderia chamar Pré-Védico, temporalmente oscilaria entre 6500 a 4500 a.C.
Um segundo Período, Védico-Brahmânico, ocorrendo entre 4500 a 1500 a.C., é fundamentado pela Arqueologia e pelo conjunto de registos textuais que o caracterizam. Com efeito, algures nesta fase transcreve-se um corpus de literatura litúrgica, ritual, sócio-cultural e tardiamente filosófico-especulativa, que durante séculos, dir-se-ia até milénios, fora oralmente transmitida. Surge então a versão escrita dos Veda-s, constituídos pelos Saṃhitā-s, Brahmāna-s, Āraṅyaka-s e, numa fase posterior ou de transição, as Upaniṣad-s, todos agrupados em quatro tomos: Ṛg, Sama, Yajur e Atharva. Aqui teríamos aquilo a que Tradição Hindu denomina de Śruti, ou Transmissão por “Revelação”, o conjunto de textos directamente transmitidos da Esfera Divina aos Sábios védicos (ṛṣi-s). Deve-se referir ainda que neste Período muitas das práticas xamânicas (eventualmente, os próprios xamãs) teriam sido transformadas ou absorvidas pelos ascetas praticantes de Tapas, de algum modo menos mal vistos pela Ortodoxia Bramânica. Num Período Pós-Védico ou Upaniṣadico, de 1500-100 a.C., sinceramente difícil de separar do anterior, as primeiras Upaniṣad-s (denominadas Mukhya), supostamente influenciadas pelo Budismo e Śramaṇa-s (portanto, à margem do total controlo da Ortodoxia Bramânica), orientam a mudança no sentido da eclosão e subsequente desenvolvimento do Vedānta.
No Período Pré-Classico ou Épico, situado entre 1000 e 100 a.C., ocorrem também as versões transcritas dos grandes Épicos Hindus: Rāmāyaṇa e Mahābhārata, que inclui a Bhagavadgītā. Principalmente no último, de um modo sincrético, ocorre já um Yoga formal e sistematizado, sendo o Mokṣadharma um caso exemplar. A partir daqui temos o que a Tradição designa de Smṛti (Transmissão pela “Memória”). Do Período anterior a este, pode-se dizer que terá havido uma transição de um proto-Yoga para um Yoga pré-Clássico.
É no Período Clássico, situado de 100 a.C. a 500 d.C., com a formulação do Yoga Darśana e consagração do Yogasūtra-s de Patañjali pelas elites intelectuais Hindus, que o Yoga ganha status e aceitação socialmente transversais. Este é o momento de definitiva institucionalização e cristalização do Hinduísmo, pois a par da definição das Seis Escolas de Filosofia Ortodoxas (Ṣaddarśana), Sāṃkhya-Yoga, Nyāya-Vaiśeṣika e Mīmāṃsā-Vedānta, há toda uma imensa produção literária (Sūtra-s e Śāstra-s) que engoloba Tratados sobre Gramática, Etimologia, Fonética, Métrica, Astrologia, Arquitectura e Ritual.
De 500 a 1700 d.C. teremos o Período Tântrico-Purânico e Sectário (ou simplesmente Devocional), incluindo: Purāṇa-s, que já seriam oralmente transmitidos no Período Épico (eventualmente, muito antes para quem defende a tese do Purāṇa Original), mas “só” agora passam à versão escrita; Tantra-s, Āgama-s e Saṃhitā-s, respetivamente ligados às seitas Śaiva-s, Śakta-s e Vaiṣṇava-s; literatura sistematizadora do Vedānta sob a égide de Śaṅkara; e os Tratados de Haṭha. São séculos de transformação de um Yoga pós-Clássico, sincrético em vários aspectos, que foge com mais força do que nunca às “garras” da Ortodoxia Hindu, chegando a uma conjuntura em que é mal visto pela mesma, como é o caso de alguns grupos de Haṭha a partir de certa altura. Com efeito, no Haṭha há uma desvinculação da ênfase na filosofia-metafísica como base exaustiva do Yoga, em detrimento de um enfoque na consciência corporal e, consequentemente, em técnicas físicas que visam a aquisição de portentos (Siddhi-s) e da Libertação (Nirvāṇa, Mokṣa, Samādhi, Kaivalya…) a bordo do corpo – e apesar de Tantra e Vedānta colorirem o suporte ontológico e epistemológico das diferentes seitas de Haṭha, era comum encontrar entre os praticantes membros oriundos de vários grupos étnicos e culturais, como por exemplo Muçulmanos, Sikh-s, Alquimistas, e outros.
Surge finalmente o Período Moderno, de 1700 à actualidade, marcado primeiro pela colonização inglesa da Índia e, subsequentemente, pela sua independência e secessão do Paquistão. A “derradeira” entrada do Ocidente na Índia faz despertar o interesse na sua prolífica cultura, resultando nos primários grandes estudos académicos sobre o Sânscrito e Tradições Contemplativas da região. A independência da Índia e a óbvia resposta nacionalista que se lhe associou, deram o mote seguinte. Ramkṛiṣṇa Pôromôhongśa, Swami Vivekananda, Sir John Woodroffe, Paramahansa Yogananda, Sociedade Teosófica e Jiddu Krishnamurti, a lista não termina, espalharam o nome do Yoga pelo mundo. Entre o primeiro e o segundo quartel do séc. XX Em Mysore, T. Kṛiṣṇamācārya desenvolve uma forma de Yoga extremamente focada na prática de āsana que acaba por ter um estrondoso sucesso dentro e fora da Índia, fundamentalmente devido à acção de dois dos seus mais célebres estudantes: K. Pattabhi Jois e B.K.S. Iyengar. A percepção geral do Yoga assume uma tonalidade bastante física, por vezes esquecendo práticas “mais” basilares e ancestrais, na medida em que as formas contemporâneas de āsana, aparentemente, têm mais a ver com um revivalismo da cultura física mundial adaptado ao que já existia trazido de tradições xamânicas e ascéticas, como argumenta Mark Singleton (6). À entrada no novo milénio, o “yoga gímnico” da indústria de biliões de dólares anuais, dos escândalos de abuso sexual, das guerras de patentes, junta-se ao “velho Yoga”, tanto fora como dentro da Índia, mostrando que é uma Ciência Contemplativa viva, em constante mudança. A Literatura Académica mais recente vem dar, provavelmente, um derradeiro golpe no “corte” do Yoga com uma leitura exclusivamente sectária, publicando-se estudos com um foco cultural e técnico, que proporcionam uma visão provavelmente mais ampla sobre tudo o que engloba, no sentido da desmistificação, sem colocar em causa o seu valor intrínseco, pelo contrário (7). O Reconhecimentos dos paralelismos entre Yoga e outras Místicas, como a Cristã ou a Islâmica, é outro dos grandes avanços do momento presente.
A Antropologia, Religião Comparada, Indologia, Estudos Orientais, Filologia Sânscrita, sob a batuta de figuras como Surendranath Dasgupta (1), Mircea Eliade (2), Elizabeth de Michelis (3), Feuerstein (4) e, mais recentemente, James Mallinson e Mark Singleton (5), entre outros, propuseram várias linhas cronológicas para enquadrar a génese e evolução do Yoga que, grosso modo, coincidem. Neste artigo, sem optar por uma linha específica, procurar-se-á integrar elementos das várias propostas, dentro do que parecerá fazer sentido, numa fase pré-escrita e, depois, numa sequência de fases caracterizadas pelo tipo de produção textual que as tipificam.
Assim sendo, a tese de que as origens do Yoga se encontram nas Tradições Xamânicas prévias e contemporâneas à Civilização do Vale do Indo parece ter alguma sustentabilidade. Fundamentalmente porque há inúmeros elementos do Xamanismo que vieram a ser encontrados (e ainda hoje se verificam) na teoria e prática do Yoga: metáforas e alegorias de base (o desmembramento e voo rituais, aquisição de super-poderes, entre outros), geração de calor corporal e posturas físicas. Deste Período, existem essencialmente registos arqueológicos, sendo o celebre Selo de Paśupati um deles, apesar de todo o folclore especulativo que se tem gerado ao seu redor. Este Período, que se poderia chamar Pré-Védico, temporalmente oscilaria entre 6500 a 4500 a.C.
Um segundo Período, Védico-Brahmânico, ocorrendo entre 4500 a 1500 a.C., é fundamentado pela Arqueologia e pelo conjunto de registos textuais que o caracterizam. Com efeito, algures nesta fase transcreve-se um corpus de literatura litúrgica, ritual, sócio-cultural e tardiamente filosófico-especulativa, que durante séculos, dir-se-ia até milénios, fora oralmente transmitida. Surge então a versão escrita dos Veda-s, constituídos pelos Saṃhitā-s, Brahmāna-s, Āraṅyaka-s e, numa fase posterior ou de transição, as Upaniṣad-s, todos agrupados em quatro tomos: Ṛg, Sama, Yajur e Atharva. Aqui teríamos aquilo a que Tradição Hindu denomina de Śruti, ou Transmissão por “Revelação”, o conjunto de textos directamente transmitidos da Esfera Divina aos Sábios védicos (ṛṣi-s). Deve-se referir ainda que neste Período muitas das práticas xamânicas (eventualmente, os próprios xamãs) teriam sido transformadas ou absorvidas pelos ascetas praticantes de Tapas, de algum modo menos mal vistos pela Ortodoxia Bramânica. Num Período Pós-Védico ou Upaniṣadico, de 1500-100 a.C., sinceramente difícil de separar do anterior, as primeiras Upaniṣad-s (denominadas Mukhya), supostamente influenciadas pelo Budismo e Śramaṇa-s (portanto, à margem do total controlo da Ortodoxia Bramânica), orientam a mudança no sentido da eclosão e subsequente desenvolvimento do Vedānta.
No Período Pré-Classico ou Épico, situado entre 1000 e 100 a.C., ocorrem também as versões transcritas dos grandes Épicos Hindus: Rāmāyaṇa e Mahābhārata, que inclui a Bhagavadgītā. Principalmente no último, de um modo sincrético, ocorre já um Yoga formal e sistematizado, sendo o Mokṣadharma um caso exemplar. A partir daqui temos o que a Tradição designa de Smṛti (Transmissão pela “Memória”). Do Período anterior a este, pode-se dizer que terá havido uma transição de um proto-Yoga para um Yoga pré-Clássico.
É no Período Clássico, situado de 100 a.C. a 500 d.C., com a formulação do Yoga Darśana e consagração do Yogasūtra-s de Patañjali pelas elites intelectuais Hindus, que o Yoga ganha status e aceitação socialmente transversais. Este é o momento de definitiva institucionalização e cristalização do Hinduísmo, pois a par da definição das Seis Escolas de Filosofia Ortodoxas (Ṣaddarśana), Sāṃkhya-Yoga, Nyāya-Vaiśeṣika e Mīmāṃsā-Vedānta, há toda uma imensa produção literária (Sūtra-s e Śāstra-s) que engoloba Tratados sobre Gramática, Etimologia, Fonética, Métrica, Astrologia, Arquitectura e Ritual.
De 500 a 1700 d.C. teremos o Período Tântrico-Purânico e Sectário (ou simplesmente Devocional), incluindo: Purāṇa-s, que já seriam oralmente transmitidos no Período Épico (eventualmente, muito antes para quem defende a tese do Purāṇa Original), mas “só” agora passam à versão escrita; Tantra-s, Āgama-s e Saṃhitā-s, respetivamente ligados às seitas Śaiva-s, Śakta-s e Vaiṣṇava-s; literatura sistematizadora do Vedānta sob a égide de Śaṅkara; e os Tratados de Haṭha. São séculos de transformação de um Yoga pós-Clássico, sincrético em vários aspectos, que foge com mais força do que nunca às “garras” da Ortodoxia Hindu, chegando a uma conjuntura em que é mal visto pela mesma, como é o caso de alguns grupos de Haṭha a partir de certa altura. Com efeito, no Haṭha há uma desvinculação da ênfase na filosofia-metafísica como base exaustiva do Yoga, em detrimento de um enfoque na consciência corporal e, consequentemente, em técnicas físicas que visam a aquisição de portentos (Siddhi-s) e da Libertação (Nirvāṇa, Mokṣa, Samādhi, Kaivalya…) a bordo do corpo – e apesar de Tantra e Vedānta colorirem o suporte ontológico e epistemológico das diferentes seitas de Haṭha, era comum encontrar entre os praticantes membros oriundos de vários grupos étnicos e culturais, como por exemplo Muçulmanos, Sikh-s, Alquimistas, e outros.
Surge finalmente o Período Moderno, de 1700 à actualidade, marcado primeiro pela colonização inglesa da Índia e, subsequentemente, pela sua independência e secessão do Paquistão. A “derradeira” entrada do Ocidente na Índia faz despertar o interesse na sua prolífica cultura, resultando nos primários grandes estudos académicos sobre o Sânscrito e Tradições Contemplativas da região. A independência da Índia e a óbvia resposta nacionalista que se lhe associou, deram o mote seguinte. Ramkṛiṣṇa Pôromôhongśa, Swami Vivekananda, Sir John Woodroffe, Paramahansa Yogananda, Sociedade Teosófica e Jiddu Krishnamurti, a lista não termina, espalharam o nome do Yoga pelo mundo. Entre o primeiro e o segundo quartel do séc. XX Em Mysore, T. Kṛiṣṇamācārya desenvolve uma forma de Yoga extremamente focada na prática de āsana que acaba por ter um estrondoso sucesso dentro e fora da Índia, fundamentalmente devido à acção de dois dos seus mais célebres estudantes: K. Pattabhi Jois e B.K.S. Iyengar. A percepção geral do Yoga assume uma tonalidade bastante física, por vezes esquecendo práticas “mais” basilares e ancestrais, na medida em que as formas contemporâneas de āsana, aparentemente, têm mais a ver com um revivalismo da cultura física mundial adaptado ao que já existia trazido de tradições xamânicas e ascéticas, como argumenta Mark Singleton (6). À entrada no novo milénio, o “yoga gímnico” da indústria de biliões de dólares anuais, dos escândalos de abuso sexual, das guerras de patentes, junta-se ao “velho Yoga”, tanto fora como dentro da Índia, mostrando que é uma Ciência Contemplativa viva, em constante mudança. A Literatura Académica mais recente vem dar, provavelmente, um derradeiro golpe no “corte” do Yoga com uma leitura exclusivamente sectária, publicando-se estudos com um foco cultural e técnico, que proporcionam uma visão provavelmente mais ampla sobre tudo o que engloba, no sentido da desmistificação, sem colocar em causa o seu valor intrínseco, pelo contrário (7). O Reconhecimentos dos paralelismos entre Yoga e outras Místicas, como a Cristã ou a Islâmica, é outro dos grandes avanços do momento presente.
Joel Machado
Notas
(1) A History of Indian Philosophy (5 Vol). 2003.
(2) Yoga. Immortality and Freedom, 1958.
(3) A History of Modern Yoga: Patanjali and Western Esotericism, 2005.
(4) The Yoga tradition, 1998.
(5) Roots of Yoga, 2017.
(6) Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice, 2010.
(7) http://hyp.soas.ac.uk/
Bibliografia
Dasgupta, S. (2003) A History of Indian Philosophy (5 Vol). Delhi, India. Motilal Banarsidass.
Eliade, Mircea (1958) Yoga. Immortality and Freedom. New York. Princeton.
De Michelis, Elizabeth (2005) A History of Modern Yoga: Patanjali and Western Esotericism. London. Bloomsbury Publishing PLC.
Feuerstein (1998) The Yoga tradition. Phoenix, Arizona. Hohm Press.
Mallinson, James & Singleton, Mark (2017) Roots of Yoga. London. Penguins Classics.
Singleton, Mark (2010) Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. New York. Oxford University Press.
(Selo de Paśupati | Foto/Créditos: Domínio Público)
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