(Artigo Académico) Princípios e Práticas do Haṭha Clássico: Da “Força” e Do “Poder”

Em seguida pretende-se apresentar, mediante uma contextualização antropológica e histórica, um Modelo do Haṭha enquanto tipo de Yoga, com a definição da sua theoria e tékné. Em todo o caso, isso será conduzido mediante a incontornável ressalva: a tipificação é algo que faz sentido com o intuito de ajudar a organizar, nunca a limitar; tenhamo-la como um meio, nunca como um fim. No fundo, o que se pretende é uma análise fundamentada e organizada sobre os princípios e práticas do Haṭha na sua manifestação Clássica, adoptando a linha conceptual de Mallinson[1].

Começando pela própria palavra Haṭha, segundo Jason Birch[2], literalmente, significa “força” ou “forçoso”. Por extensão, denota um sistema de técnicas (psico-físicas) auxiliares (aṅga) do Yoga e teoricamente baseadas num corpo sincrético. Até ver, a designação Haṭha (Yoga) é encetada no Dattātreyayogaśastra[3], texto sânscrito datado do séc. XII d.C., mas algumas das suas técnicas podem ser rastreadas a centenas e milhares de anos antes, com registos na Literatura de Viagem, nos Grandes Épicos e no Cânone Pali, por exemplo. E porquê a adopção do nome “Haṭha”? Não é directamente esclarecido nos textos de Haṭha, no entanto parece crível que, pelo menos originalmente, isso tenha acontecido porque as práticas que engloba, tal como Tapas (Ascetismo), com o qual estavam associadas, eram difíceis e “forçavam” os resultados a acontecer. Se etimologicamente Haṭha remete para “força”, alguns milieus[4], referem que ha está para a “lua” como ṭha para o “sol”, o que do ponto de vista da Filologia aparentemente não tem sentido, remetendo antes para um significado “metafórico” que se lhe pretenda dar: o da união ou dissolução dos opostos, redolente, por ventura, da agenda alquímica-tântrica que também subjaze o Haṭha.

Sendo o Haṭha o resultado de um processo sincrético de múltiplas influências (Xamanismo, Ascetismo, Budismo, Alquimia, Śaivismo e Tantra), não será pacífico falar de teoria ou técnicas verdadeiramente originárias do Haṭha, pode-se, no entanto, dizer que a partir de dada altura, a esses níveis certos elementos das referidas influências, por um processo natural de apropriações e concomitante evolução, se lhe tornam próprios. Os casos mais paradigmáticos serão: o corpo de āsana-s não-sentadas; as kriyā-s ou purificações; os mudrā-s ou selos e os bandha-s ou fechos (bloqueios); e o prāṇāyāma ou controlo-expansão da respiração. Outros elementos, técnicos, mas principalmente teóricos, igualmente oriundos de outras Tradições ou “Sistematizações” de Yoga, ocorrem com menor transformação no corpo do Haṭha: por exemplo, o conceito de energia vital (prāṇa; bindu e kuṇḍalinī) e fisiologia subtil (cakra-s e nāḍī-s); a concentração no “som interno” ou nādānusandhāna; e auxiliares (āṅga-s) do Yoga Clássico, como pratyāhāra (retracção dos sentidos) como dhrāraṇa (concentração), dhyāna (meditação) e samādhi (Absorção), numa clara “incorporação” do Rājayoga, que por vezes, pode oscilar para o oposto, uma separação[5]. Com efeito, ao longo da sua Tradição Textual, o Haṭha é por vezes distinguido de outros tipos de Yoga, não só o Rājayoga, mas também o Mantrayoga e Layayoga. Porém, o contrário também ocorre e na prática os elementos misturam-se frequentemente como um só, assumindo (com as devidas ressalvas) que “todos os caminhos vão dar a Roma”.

Grosso modo, os objectivos do Haṭha são iguais aos de outras formas sistematizadas de Yoga: siddhi-s (benefícios mundanos e poderes mágicos) e mukti (Libertação); o último entendido como obtendo-se num corpo imortalizado pelas práticas de Haṭha. Aliás, a procura de toda esta demanda soteriológica ocorre de acordo com uma orientação corpórea, pelo que as práticas do Haṭha Yoga possuem um carácter predominantemente físico; veja-se o exemplo dos siddhi-s, quase todos “físicos”, que vão da perda de rugas e cabelos brancos à capacidade de levitar, domínio sobre os Elementos grosseiros, entre outros.

Postos os pontos gerais, avançaremos então analisando os mesmos pormenorizadamente, num quadro de princípios e práticas do Haṭha e, por fim, em tom de conclusão.

 

Princípios do Haṭha

A ideia fundamental do Haṭha Medieval não é nova no Hinduísmo, tampouco estranha a outras Tradições Espirituais Orientais e não-Orientais: investigando contemplativamente e praticando sobre a relação triangular entre Mente, Respiração e Energia Vital, atingir-se-ão superpoderes (siddhi-s) e, simultânea ou posteriormente, o estado de Libertação em vida (Jivanmukti), num corpo físico divinizado e imortalizado. Esta ideia, ao longo dos séculos de evolução do Haṭha, é ilustrada de modos diferentes, consoante o foram permeando as variadíssimas (e já referidas) fontes de influência.

Nas suas formulações precursoras, o Haṭha era aplicado para elevar e conservar o bindu, a essência física da vida. O bindu existiria num armazém situado no centro do crânio e, num estado “normal”, pingaria constantemente na direcção do plexo solar ou baixo-ventre, dependendo da versão, onde se dissiparia, redundando numa contínua perda de vitalidade. Identificado nos homens com o sémen, o seu equivalente feminino, mencionado ocasionalmente e em poucas fontes[6], é rajas, o fluido uterino (ou menstrual). Note-se que a preservação e sublimação do sémen já vinha associada a Tapas desde o tempo dos Épicos, pelo menos, o que reforça a ideia de que algumas dos princípios e técnicas do Haṭha percursor se tenham desenvolvido no milieu asceta. Segundo Mallinson[7], as técnicas do Haṭha pré-Clássico operavam mediante dois modos distintos, porém, complementares:

·        Mecanicamente: em práticas que visavam literalmente inverter o corpo para, consequentemente, impedir o bindu de pingar e desbaratar-se, retendo-o no crânio; um exemplo paradigmático é a postura viparītakaraṇi (o “inversor”), que ocorria em múltiplas variantes, onde o denominador comum seria permanecer de cabeça para baixo;

·        e Pneumaticamente: encanando o ciclo respiratório ou sopro vital pelo eixo central do corpo, isto é, da base da espinha ao topo da cabeça, e dessa feita criando uma corrente ascendente que, contrariando a tendência do bindu a pingar, o “forçaria” a ficar conservado no seu armazém sediado na cabeça.

Tanto a abordagem pneumática como a mecânica eram acompanhadas de práticas acompanhantes, os mudrā-s (selos) ou bandha-s (fechos ou bloqueios), emblemáticas do Haṭha e das quais se falará com detalhe mais adiante.

Em formulações posteriores de Haṭha, sobrepõe-se a este sistema ascético de bindu o sistema tântrico de duas Transmissões Kaula, Dakṣiṇāmnāya e Paścimāmnāya, baseado na visualização da ascensão da “energia” kuṇḍalinī[8] (a “Serpente Enrolada” ou “Deusa Serpente”) através de um sistema axial de cakra-s e nāḍī-s. As mesmas técnicas referidas, juntamente com outras “novas”, fundamentalmente visualizações meditativas, passam a ser utilizadas com o intuito de fazer subir a kuṇḍalinī ao longo desse canal central, cunhado suṣumṇā, para atingir o armazém de amṛta (“o néctar da imortalidade”), situado na cabeça. Assim que isso acontece, a própria kuṇḍalinī dissemina o amṛta pelo corpo, e ao “inundá-lo” do néctar inefável, rejuvenesce-o, tornando-o imortal. Em suma, as propostas mecânica e pneumática para atingir este propósito mantém-se, juntando-se a meditativa, de visualização, oriunda de práticas de génese Śaiva e Tântrica (inclusive, Budista), cunhadas saṃketa-s (“práticas secretas”), tais como o Laya (dissolução), Nāda (som interno) e Mantra Yoga.

O sucesso do Haṭhapradīpikā levou a que o modelo da ascensão da kuṇḍalinī se tornasse o racional para a generalidade das práticas de Haṭha Yoga. Contudo, é frequente os dois sistemas, bindu-kuṇḍalinī ocorrerem nos mesmos textos, por vezes até de modo contraditório, o que pode querer significar uma tentativa de integração; um exemplo claro desse tipo de intuito ocorre, precisamente, no Haṭhapradīpikā. De facto, com a adopção do racional da kuṇḍalinī desponta uma variedade de outras práticas e objectivos, e quanto se tentam compreender a contradição no Haṭha, é essencial ter em mente os seguintes binómios:

bindu <=> kuṇḍalinī;

mukti (libertação) <=> bhoga (desfrute);

haṭha (forçado) <=> sahaja (natural).

É relevante referir que o Haṭha Clássico pauta por uma certa simplicidade quando se toca ao tema da teorização. De facto, ao longo da sua evolução e sedimentação, a questão prática da aplicação das técnicas é sempre preconizada em detrimento de algum tipo de teorização complexa; não que a teoria e os pressupostos metafísicos e filosóficos percam relevância, de modo algum, assume-se no entanto, em termos de tónica geral, que o sucesso da prática está em simplificá-la ao máximo e investir na correcta execução das técnicas consagradas.

No todo, o Haṭha Clássico prima também por esta tentativa de integração de “opostos” teóricos (e práticos), o que redunda no seu universalismo, como carácter definidor a par da fisicalidade e da simplicidade.

 

Práticas do Haṭha Yoga Clássico

As práticas que tipificam o Haṭha Yoga Clássico, consagradas pela aceitação unânime do Haṭhapradīpikā como texto canónico, podem alinhar-se segundo a seguinte sequência[9]:

·        Preparações ou Preliminares;

·        “Acções” de Limpeza ou Purificação (Kriyā-s);

·        Posturas físicas (Āsana);

·        Retenções (Kumbhaka) ou Técnicas Respiratórias (Prāṇāyāma-s);

·        Selos (Mudrā) e Fechos ou Bloqueios (Bandha).

As Preparações compreendem aspectos como a dieta, características do espaço físico da prática e conduta individual-social do praticante. Quanto à dieta (mitāhāra), a ideia geralmente transmitida é que deve consistir em comida parcamente aromatizada, doce, untuosa, nutritiva, saborosa e ingerida em pequenas quantidades. Quanto ao local de prática (maṭha), ocorrem descrições de um tugúrio, bem construído, isolado e localizado num lugar pacífico. Já às Práticas Preliminares dizem respeito ao conjunto de Princípios Éticos e Disciplinas (ou Observâncias), que devem ser absolutamente basilares ao praticante de Haṭha, ao nível da importância da relação guru-discípulo. São os Yama-s e Nyama-s que normalmente ocorrem em grupos de dez, ao contrário da versão popularizada em Patañjali, que agrupa grupos de cinco, respectivamente.

As Técnicas de Limpeza ou Purificação, provavelmente originárias do Āyurveda e Alquimia, portanto, contemporâneas dos Épicos[10], consistem numa série de “acções” (ou Kriyā-s) que visam preparar o corpo físico dos praticantes para o Haṭha mais avançado, sob pena de se colherem mais malefícios que benefícios. As mais populares são:

1.      Dhautī: limpeza gastro-intestinal através da ingestão de uma tira comprida de pano, enrolada, que é, seguida e lentamente, extraída pela ponta;

2.      Basti: clister, tradicionalmente executado de cócoras e submerso em água, podendo-se usar um canudo inserido no ânus, para sugar e expelir a água;

3.      Neti: limpeza das fossas nasais usando um fio de algodão, que é inserido numa da narina à boca e ritmicamente puxado para dentro e para fora; a versão mais conhecida actualmente usa antes um fio de água salina, o Jala Netī;

4.      Trāṭaka: limpeza da pelicula lacrimal mantendo-se os olhos ininterruptamente abertos, sob um foco vidual, até lacrimejar;

5.      Nauli (Naulī, Lauli ou Laulikī): tida como a base das acções de limpeza, é uma técnica de limpeza visceral que consiste em tencionar os músculos do abdómem, em direcção a coluna vertebral, e em seguida fazê-los rolar, como uma “onda”, da esquerda para a direita e vice-versa;

6.      Kapālabhātī: é uma técnica respiratória que visa purificar o sistema respiratório e que assenta em Inspirar e expirar vigorosamente pelo nariz, como um “fole”;

7.      Gajakaraṇi: uma limpeza do estômago perpetrada pela ingestão e subsequente regurgitação de água ou uma solução de água com sal;

8.      Cakri: técnica que consiste em inserir um dedo no ânus e rodá-lo até ao relaxamento dos esfíncteres anais.

É curioso observar que alguns textos não só trocam críticas[11] mútuas como, aparentemente, competem entre si para ver quem apresenta as melhores técnicas[12].

As posturas físico-posturais (Āsana) enquanto “auxiliares” do Yoga, atingem um novo nível no contexto do Haṭha. Concretamente, posturas físicas relativamente complexas e não-sentadas, começam a ser ensinadas e preconizadas pelos efeitos benéficos e portentosos causados no praticante. A evolução do uso e alcance do termo āsana não cabe aqui como objectivo, em todo o caso e resenhando, crê-se que a primeira referência textual a posturas não-sentadas (enquanto aṅga) ocorra no Tradição Pāñcarātra Vaiṣṇava, por volta do séc. X, em textos como o Vimānārcanakalpa, Ahirbudhnyāsamhitā e Vasiṣṭhasamhitā. O Matsyendrasamhitā do séc. XIII, o texto mais antigo da Tradição Nāth, descreve como posturas de pé, complexas, os āsana-s que nos textos anteriores eram posturas sentadas: mayūrāsana (“pavão”), kukkuṭāsana (“galo”), kūrmāsana (“tartaruga”). Por volta do séc. XIV, a palavra āsana passa a descrever qualquer tipo de postura física, tendo para isso contribuído o Rasaratnākara, texto Maithili, ao servir-se dos termos bandha e āsana para descrever posições de intercurso sexual. O Dattātreyayogaśastra e o Vivekamārtaṇḍa apontam 84 lākh āsana-s, mas o primeiro só ensina padmāsana à qual o segundo acrescenta siddhāsana, sendo com o Haṭharatnāvalī do séc. XVII que pela primeira vez se ensinam 84 āsana-s individuais. Pelo meio, o Haṭhapradīpikā ensina 15 āsana-s[13], dos quais sete são posturas sentadas, e marca o início da proliferação da importância de tais posturas na prática de Yoga[14].

As Retenções (Kumbhaka) ou Controlo e Expansão da Respiração (Prāṇāyāma), no fundo misturam-se, formando um só aṅga. Crê-se que a sua introdução no corpus do Haṭha seja oriunda de uma mistura de três influências: (1) a tradição de respiração regulada, ou prāṇāyāma, antiquíssima, que poderá remontar ao xamanismo e posteriormente aos ascetas Śramaṇa-s, que visava limpar impurezas físicas e purificar karma; (2) um princípio mais recente do Yoga, também partilhado por certos milieus ascetas, que liga Respiração, Mente e Energia Vital (como vimos, frequentemente associada ao sémen ou pulsão sexual), segundo a lógica de que, “cessando-se” um, “cessar-se-ão” os outros também; e (3) eventualmente de influência alquímico-tântrica, métodos específicos de respiração que visavam agir sobre o momento da suspensão da respiração, daí a designação kumbhaka, literalmente, “retenção”, trabalhando sobre os corpos grosseiro e subtil[15]. Genericamente, os trabalhos de Haṭha ensinam primeiramente um prāṇāyāma simples que corresponde à descrição do actual Nāḍī Śodhana, intermediando tanto inspirações como expirações com períodos longos de retenção. Já o kumbhaka, usualmente, é de dois tipos: sahita (“acompanhado” ou provocado) e kevala (“não-acompanhado” ou espontâneo). Do Dattātreyayogaśastra ao Haṭhapradīpikā, listam-se e descreve-se oito técnicas de respiração ou sahita kumbhaka-s que, eventualmente levarão ao tal kevala kumbhaka, correspondendo ao domínio do Haṭha, portanto, acompanhado de uma série de benefícios e poderes especiais desencadeados:

1.      Sūryā: inspira-se pela fossa nasal direita, ou solar, sustém-se a respiração, e expira-se pela fossa esquerda, ou lunar;

2.      Ujjāyī: inala-se por ambas as narinas, produzindo um som rasante ao “projectar o ar ao palato e epiglote, sustém-se a respiração, e expira-se pela narina esquerda;

3.      Śītali: inspira-se por entre a língua, enrolada entre os lábios como um canudo, e expira-se por ambas as narinas;

4.      Bhastrī: inspira e expira-se repetida e rapidamente por ambas as narinas e, depois, lentamente inspira-se pelo canal direito, sustêm-se a respiração, e expira-se pelo canal esquerdo;

5.      Sītkārī: inspira-se pela boca, produzindo um assobio e expira-se pelas narinas;

6.      Brāhmarī: ao inspirar e expirar, produz-se um som zumbido;

7.      Mūrcchā: terminado a expiração lenta, aplica-se o Jālandhara Bandha e retém-se a respiração, até se abeirar o desmaio;

8.      Plāvinī: enche-se o abdómen com ar ao ponto de flutuar se submerso em água água.

Estas técnicas de respiração, no geral, visam a purificação do complexo corpo-mente, apresentando uma série de benefícios essencialmente físicos, mas também a conservação do bindu ou elevação da kuṇḍalinī.

Os Selos (Mudrā-s) e Fechos ou Bloqueios (Bandha-s), com a retenção controlada (sahita kumbhaka), constituem-se as práticas-mestras do Haṭha, dos seus primórdios à formação da sua forma Clássica por Svatmārāmā. Começam por identificar-se três tipos no Amṛtasiddhi e mais tarde dez no Gorakṣaśataka e Dattātreyayogaśastra, chegando aos onze no Haṭhapradīpikā[16]. Algumas destas práticas, Vajrolī (que subsume Sahajolī e Amarolī), têm uma conotação sexual ou antinominianista, o que lhes valeu serem censuradas aquando da transcrição de alguns textos de Haṭha, como é o caso da síntese clássica do Haṭhapradīpikā. Às oito práticas resultantes, que no Haṭhapradīpikā são todas classificadas como mudrā-s, acrescentaram-se outras três: Mahāveda, Śakticālanī e Yonimudrā. Convém ainda dizer que o Haṭhapradīpikā aponta como objectivo dos mudrā-s elevar a kuṇḍalinī. Descrevendo sucintamente cada um destes Selos e Fechos ou Bloqueios:

1.      Mahāmudrā: pressiona-se o períneo com o calcanhar do pé esquerdo, estende-se a perna direita e segura-se o pé direito com ambas as mãos; absorve-se (suga-se) o abdómen, encosta-se o queixo ao nó clavicular, e inala-se; após a exalação, troca-se a posição de pé e perna repetindo-se o processo;

2.      Mahāvedha: este mudrā, que leva o sopro a entrar pelo canal central, é primeiramente ensinado no Amṛtasiddhi; em posição sentada deve-se pressionar as solas dos pés uma contra a oura e os calcanhares contra o períneo; em textos posteriores, o praticante senta-se com um pé debaixo do períneo, eleva-se com as duas mãos e, em seguida, deixa que o períneo caia sobre o calcanhar;

3.      Mahābandha: tem também a sua primeira descrição no Amṛtasiddhi, sendo igual mūlabandha; em textos posteriores, para se selar o mahābandha, primeiro assume-se o mahāmudrā, colocando-se o pé da frente sobre a coxa oposta;

4.      Khecarīmudrā (Śakticālanī): estica-se a língua, de maneira a poder ser retrovertida e inserida na cavidade atrás do palato mole, para a encerrar o bindu na cabeça, saborear o amṛta, ou fazer com que a kuṇḍalinī suba;

5.      Jalāndharabandha: recolhe-se a mandibula, posicionando-se o queixo na parte superior da linha do esterno, contra o peito;

6.      Uḍḍīyānabandha: corresponde a uma cavada absorção ou sucção do abdómen;

7.      Mūlabandha: contrai-se o períneo, elevando o soalho pélvico; esta e as duas técnicas anteriores são frequentemente agrupadas sobe a denominação de “os três bandhas”, devendo ser praticadas durante a retenção da respiração e, por vezes, sendo também prescritas, sem serem nomeadas, como adjuntas a outras técnicas, tais como padmāsana;

8.      Viparītakaraṇī: corresponde à inversão do corpo, usualmente sobre a cabeça ou sobre os ombros;

9.      Vajrolī (Shajolī e Amarolī): técnica que após a ejaculação permite sugar pela uretra, o sémen e os produtos conglomerados do intercurso; o Vajrolī é frequentemente agrupado às técnicas de Shajolī e Amarolī que, ou não são ensinadas ou são descritas de modos diferentes consiante os textos; o Shajolī normalmente implica esfregar o corpo com cinza após o intercurso; Amarolī implica beber ou aplicar nasalmente a própria urina;

10.  Śakticālanī: a língua é embrulhada num pano e puxada de maneira a estimular a kuṇḍalinī, tal como é indicado pela etimologia “o mudrā que estimula a Śakti”;

11.  Yonimudrā: prática quase sempre mencionada de passagem, sem descição detalhada, igual ao Mūlabandha mas especificamente orientada a elevar a kuṇḍalinī.

 

A Universalidade do Haṭha Clássico

O Haṭha Clássico primou por uma democratização, ao nível da aceitação de influências teórico-práticas e praticantes de múltiplas e variadas origens, que lhe deu uma tónica universalista[17]. Assim, aquando do seu desenvolvimento e consolidação, sempre assumiu que podia ser praticado por todos, independentemente de género, casta, classe social ou credo, do mesmo modo, afiliação sectária e inclinação filosófica não eram um critério para se poder ou não aprender e praticar Haṭha[18]. Isso verifica-se na prática, pois os textos de Haṭha Yoga, com algumas excepções[19], não incluem ensinamentos em metafísica ou práticas específicas associados a uma dada seita. A premissa básica do Haṭha assume que: primeiro, falar de filosofia no Yoga é perder o fio à meada; segundo, Yoga é uma disciplina prática apontada a atingir a libertação; ulteriormente, se devidamente praticado, vai dar resultado, independentemente das crenças do praticante. Esta falta de sectarismo nos textos de Haṭha tornaram-nos prontamente legíveis e adóptaveis por outras tradições que não as dos seus autores. Assim estes textos foram usados para compilar as Yoga Upaniṣad-s[20] e outras obras traduzidos para o Persa, de maneira a satisfazer o interesse Mughal no Yoga, por exemplo. Em última análise, existe quem afirme que esta falta de sectarismo fez com que o Yoga se pudesse proliferar pelo mundo nos dias de hoje.

 

Integrando e Finalizando

Em suma, poderá dizer-se que o Haṭha Yoga é um corpo que se edifica a partir de um processo de mestiçagem de teorias e práticas de Yoga, ao longo de séculos, caracterizado por uma relativa simplicidade filosófica e pelo facto de estar aberto a um leque ilimitado de praticantes, para os padrões da época.

A antiga tradição do ūrdhvaretā-s tapasvī (“o asceta cuja semente está virada para cima”), intimamente associada à prática de Yoga em textos como o Mahābhārata, é com elevada probabilidade a fonte do Haṭha percursor, na qual a preservação do bindu é primordial. Esta tradição relativamente ortodoxa sobreviveu até aos dias de hoje, em ordens ascéticas como os Saṃnyāsī-s Daśanāmī e Rāmānandī-s. Este Haṭha primordial, orientado à conservação do Bindu foi sobreposto pelo Layayoga da Tradição Kaula, associado às Linhagens de Siddha-s, encabeçadas por Matsyendra e Gorakṣa, que vieram a ser conhecidos como os Nāth-s e ficaram popularmente conhecidos como praticantes de artes mágicas, Śaiva e Rasāyana (Alquimia), adorando Deusas Yogīnī-s, assim como pelo kuṇḍalinī yoga e outras técnicas de Laya.

O Haṭha avançou numa fase pós-Clássica e teve nos três estudantes mais célebres de Kriṣṇamācārya: T. K. V. Desikachar, K. Pattabhi Jois, e B. K. S. Iyengar, os seus grandes embaixadores e “modeladores” da actualidade; “modeladores”, e as aspas, porque, sem qualquer tipo de despeito, em alguns aspectos os seus ensinamentos pouco têm a ver com a formulação original do Haṭha Clássico Medieval[21].

Assim, e concluindo, se quisermos apresentar uma estrutura formal e genérica do Haṭha Clássico, com todas as ressalvas que já foram feitas acerca de tal demanda, pensamos que o quadro anexado possa cumprir o propósito.

Joel Machado

 



Notas

[1]  Mallinson (2011) propõe uma distinção entre Haṭha pré-Clássico, Clássico e pós-Clássico, em função do momento no seu período de formação. Concomitantemente, Haṭha Clássico é uma designação artificial, que cunha a proposta integradora de Svatmārāmā, sistematizada no Haṭhapradīpikā; surge também para distinguir este Haṭha “original”, no seu todo, do Haṭha Contemporâneo, que assume inúmeras formas, na Índia e diáspora, quase sempre autodenominadas e com pouca ou nenhuma ligação ao Haṭha “original”.

[2] Jason Birch, The Meaning of haṭha in Early Haṭhayoga, 2011; Jason Birch, The Yogatārāvalī and the Hidden History of Yoga, 2015.

[3] O Dattātreyayogaśastra (“O Ensinamento ou a Ciência do Yoga segundo Dattātreyayogaśastra), até ver, é o primeiro texto a utilizar o termo Haṭha e a sistematizá-lo como uma forma de Yoga, caracterizada por um conjunto de práticas e técnicas, como por exemplo mudrā-s, que vêm a tornar-se paradigmáticas do corpo em questão (Mallinson, 2013).

[4] Jason Birch, em The Meaning of Haṭha in Early Haṭhayoga (2015) explora esta questão e reforça a ideia de que a etimologia da palavra Haṭha remete mesmo para o acto de “forçar” algo, neste caso, resultados na prática contemplativa rumo à aquisição de superpoderes ou da libertação; menciona ainda o facto de também Feuerstein (1998) se referir à associação do termo Haṭha com o binómio Sol-Lua, reflectir uma que definição esotérica ou metafísica, e não a raiz lexical do termo em si.

[5] São de longa data os “conflitos” entre Haṭha e Rājayoga (Birch, 2015); podemos encontrar um exemplo paradigmático no modo como o Yogatārāvalī, em princípio baseado no Amanaska, é redigido e como grande parte do seu discurso se centra precisamente nesta ideia; mais recentemente, Vivekananda, aquando do inicio da “internacionalização” do Yoga pela sua mão, frequentemente apontou a supremacia do sobre Rājayoga o Haṭha, criticando abertamente este último (Singleton, 2010).

[6] James Mallinson, Yoga and Sex: What is the purpose of Vajrolīmudrā, 2013.

[7] Haṭha Yoga, 2011.

[8] O conceito de kuṇḍalinī não é de fácil definição, na medida em que ao longo do tempo e diferentes tradições vais sendo apresentado de formas mais ou menos distantes entre elas (Mallinson, 2017). Normalmente a kuṇḍalinī é definida como um repositório de energia que permanece latente e, mediante a aplicação de práticas de Yoga, pode ser libertada com maior ou menor intensidade, levando a uma “energização” do corpo físico-subtil que redunda na aquisição de poderes paranormais (siddhi-s) e em última análise a própria Libertação (mukti); outras fontes, como por exemplo a do Yogayājñavalkya, baseado no Pādmasaṃhitā (Linder, 2012), apresentam a kuṇḍalinī como um bloqueio à proliferação de prāṇa no corpo físico-subtil, pelo que o sentido da prática seria o de desbloquear a kuṇḍalinī, como quem abre uma comporta e na sequência, recebe o influxo que daí vem (Mohan, A. G. & Mohan, Ganesh, 2013).

[9] Note-se que também vamos colocar nesta secção outros aspectos e técnicas que não ocorrem só no Haṭhapradīpikā, mas que se tornaram de algum modo paradigmáticos do Haṭha Clássico e pós-Clássico; portanto a ideia é chegar a um modelo das teorias e práticas do Haṭha Medieval.

[10] Mallison, (2011, 2017), refere que, apesar do Haṭhapradīpikā conter a primeira referência textual que se conheça ao ṣaṭkarma, não significa que tais práticas sejam contemporâneas desse texto; pensa-se que o nauli seja a mais antiga das “acções”, sendo apesentada como parte da execução do vajrolīmudrā no Dattātreyayogaśāstra, que antecederá o Haṭhapradīpikā em pelo menos dois séculos; crê-se o termo ṣaṭkarma seja bem anterior ao Haṭhapradīpikā podendo referir-se a um conjunto de deveres Bramânicos ou, em tradições tântricas (e alquímicas), a rituais de cura de doenças e de controlo de outras pessoas; isto poderá querer dizer que Svatmārāmā, ao compilar o Haṭhapradīpikā, podo ter tentado fazer desta inclusão um trunfo ao corpo do Haṭha.

[11] Mallinson & Singleton (2017), mencionam por exemplo o caso da crítica aberta de Śrīnivāsa, no Haṭharatnāvalī, que critica abertamente Svatmārāmā, no particular da enumeração e definição das seis acções de purificação (ṣaṭkarma).

[12] Mallinson & Singleton (2017), justificam este argumento comparando śloka-s de diferentes textos de Haṭha; por exemplo a descrição de dhauti presente no Gheraṇḍasṃhitā e a mirabolante técnica mūlaśiśnaśodhanaque que ocorre no Jogpradīpakā, segundo a qual se deve assimilar água pelo ânus e expeli-la, para fins purificatórios, o que é anatómica e fisiológicamente impossível.

[13] Ocorre no Primeiro capítulo, normalmente śloka-s I:19-58; Svastikāsana (“Postura Auspiciosa”), Gomukhāsana (“Postura da Face da Vaca”), Virāsana (“Postura do Herói”), Kurmāsana (“Postura da Tartaruga”), Kukkutāsana (“Postura do galo”), Uttāna Kurmāsana (“Postura Supina da Tartaruga”), Dhanurāsana (“Postura do Arco”), Matsyedrāsana (“Postura de Matsyendra”), Paścimottānāsana (“Postura da Extensão Ocidental”), Mayūrāsana (“Postura do Pavão”), Śavāsana (“Postura do Cadáver”), Siddhāsana (“Postura do Perfeito”), Padmāsana (“Posição de Lótus”), Siṃhāsana (“Postura do Leão”) e Bhadrāsana (“Postura Benéfica”).

[14] Para uma extensa e revolucionária revisão do desenvolvimento da prática física no yoga, vide Mark Singleton, The Yoga Body, 2010.

[15] James Mallinson, Haṭha Yoga, 2011.

[16] James Malinson, Haṭha Yoga, 2011; James Malinson, Dattātreya’s Discourse on Yoga, 2013.

[17] Georg Feuerstein, The Yoga Tradition, 1998; Mark Singleton, Yoga Body, 2010; James Mallinson, Haṭha Yoga, 2011;

[18] A plateia pretendida dos textos de Haṭha Yoga provavelmente seria constituida por homens brâmanes, como é o próprio dos textos sânscritos. Existem, contudo, referências a mulheres praticantes dentro dos textos. Em alguns textos, chefe-de-família e comunidades de renunciantes são tidos como praticantes elegíveis de Haṭha, mas a dificuldade da maioria das suas práticas e o tempo que demoravam a ser dominadas, assim como a natureza do seu objectivo, a Liberação, implicava que fossem fundamentalmentepraticadas por ordens de renunciantes (Mallinson, 2011; Mallinson & Singleton, 2017).

[19] Por exemplo Amanaska, Śivasaṃhitā e Yogatārāvalī (Birch, 2015; Mallinson, 2011).

[20] Veja-se a este respeito, Christian Bouy, Les Nātha-Yogin Et Les Upaniāṣads, 1994.

[21] De frisar que tem influência de uma linhagem de Śrivaiṣṇaismo, intimamente relacionados ao Dattātreyayogaśastra e às tradições Pāñcarātra que ensinavam posturas não-sentadas, complexas; quem sabe venha daí a tónica que colocam nas práticas físicas auxiliares do Yoga (Birch, 2015).


Bibliografia

Bouy,Christian (1994) Les Nātha-Yogin Et Les Upaniṣads.Paris. Diffusion de Boccard.

Birch,Jason(2011)The Meaning of haṭha in Early Haṭhayoga.Journal of the American Oriental Society, 131 (4). pp. 527-554.

Birch,Jason(2015)The Yogatārāvalī and the Hidden History of Yoga. Nāmarūpa, Issue 20 (Spring 2015).

Feuerstein, Georg(1998). The Yoga Tradition. Its History, Literature, Philosophy and Practice. Chino Valley, Arizona. Hohm Press.

Mohan,A. G. & Mohan, Ganesh [trad.,coment.] (2013) Yoga Yājñavalkya. Svastha Yoga.

Mallinson, James (2011) 5,000-word Entry on “Haṭha Yoga” in the Brill Encyclopedia of HinduismVol. 3 (pp. 770-781). Leiden: Brill.

Mallinson, James (2013) Dattātreya’s   Discourse   on   Yoga.(https://terebess.hu/keletkultinfo/lexikon/Datta-Mallinson.pdf

Mallinson, James (2017). “Yoga and Sex: What is the Purpose of Vajrolīmudrā?”in Yoga in Transformation, a volume of revised papers from the conference of the same name held at the University of Vienna in September 2013, to be published by V&R unipress in the series “Wiener Forum für Theologie und Religionswissenschaft”.

Linder, S. S. (2012) The Philosophical and Theological Teachings of the Pādmasaṃhitā. Universität Wien. Wien.

Singleton, Mark (2010) Yoga Body. The Origins of Modern Posture Practice. New York. Oxford University Press.


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