A sala de prática está lotada. A professora, anatomicamente correcta segundo os padrões vigorantes de beleza, orienta a sessão com uma voz despropositadamente adocicada, sendo científico que o açúcar branco faz mal à saúde. Contrassenso. Os alunos seguem a instrução, tanto quanto corpo e mente lhes permite, senão, ora forçam, ora sucumbem a alguma percepção de preguiça ou indolência efectiva. Posturas de pé, excelentes para fortalecer coxas e glúteos, mantidas em permanências tortuosas para uns, triunfantes para outros. Posturas sentadas com flexão da coluna lembram o limite que separa sanidade de insanidade corporal, à custa disso, algumas almas já têm costelas sobrepostas e a lombar aos prantos, outras executam a proeza numa estética digna de Instagram, pelo menos assim pensam em tempo real. Chegam as Invertidas, sem suportes, como um verdadeiro ‘yogin’, é defendido, e os discos cervicais da maioria brada aos céus, mesmo de quem sente que faz a coisa na vendida perfeição. Seguem-se as extensões da coluna, para contrabalançar o efeito das invertidas, mas o que sucede é juntar as vértebras dorsais à sinfonia da destruição. Finalmente, o relaxamento em posição deitada, ao som de um mantra cantado com erros grosseiros e numa pronúncia constrangedora. A professora debita a última das frases sacadas de bestsellers de auto-ajuda, sobre perdão e gratidão, despachando o povo para dar lugar à aula seguinte. Há quem se levante e jure para nunca mais. Há quem saia da aula com a sensação de ter acabado de conquistar a Champions League ou o Super Bowl do Yoga, de tão prodigiosa e irrepreensível que achou a sua prática de āsana. Há quem creia piamente que recarregou as baterias, num oásis de bem-estar, para enfrentar as restantes 167 horas da semana, pejadas de pura frustração e infelicidade, estando com quem não se quer a fazer-se o que não se gosta.
A caricatura anterior pode virtualmente retratar uma percepção comum do Yoga Moderno: um grupo de gente que se reúne, sobre a batuta de um monitor bem-apessoado, para se engajar em posturas de quasi-contorcionismo ao som de mnemónicas orientais ininteligíveis. As redes sociais reforçam esta imagem. Os motores de busca ibidem, basta pesquisar por fotografias com base no termo e logo surgem corpos esculturais atascados de rostos com sorrisos à prova de água, em āsana-s mais ou menos aparatosas.
De facto, a partir de determinado momento da sua História, o Yoga começa a ser identificado com as práticas posturais que pode englobar, as āsana-s, tomando-se uma ínfima parte pelo todo. Confunde-se o “meio” com o “Fim”, na medida em que a prática de āsana só se torna Yoga se for acompanhada de uma atitude concentrada-meditativa, pelo menos, e baseada em princípios éticos. Posto isso, surge a questão: qual o valor da āsana em si? Há que ver os seguintes aspectos: (1) origem da prática moderna de āsana; (2) a função dos blocos de āsana que hoje em dia proliferam; (3) a percepção que praticantes, professores e público em geral têm disso; e (4) o resultado final.
Quanto às origens, olhando os registos históricos à disposição, a prática de āsana é relativamente recente no Yoga, pelo menos com o grau de elaboração que hoje em dia se vê. Nos primórdios, só se configuravam posturas sentadas cuja utilização visava o exercício da respiração-condicionada (prāṇāyāma) e meditação. Posturas físicas, não-sentadas, começam a ocorrer com durante o período de institucionalização do Haṭha, pensa-se que por adaptação de algumas práticas corporais ascéticas. Contudo, é o movimento de Mysore, inaugurado por T. Kṛṣṇamācārya e, posteriormente encabeçado por Pattabhi Jois e B.K.S Iyengar que cria o modelo actualmente global de ensino e prática de āsana. Esse modelo despenca entre as décadas de 50 e 60 do séc. XX, misturando elementos que existiam nas práticas de Yoga tradicionais com influências de vários quadrantes: exercícios calisténicos e isométricos de treino militar inglês; fisioculturismo; ginástica sueca de Ling; contorcionismo; técnicas de luta-livre; entre outros. A disseminação à escala mundial deste modelo de Yoga Postural resulta também do grande número de alunos estrangeiros que seguiram os professores indianos atrás mencionados. O resultado são os estilos dominantes da actualidade enquadrados sob a categoria de Yoga Postural Moderno, made in USA, que pouquíssimo tem a ver com o Yoga Tradicional.
Quanto à função da āsana em si, nos moldes em que é actualmente praticada, haverá o valor que realmente terá e o valor que lhe damos! Quanto ao valor intrínseco, é inegável que a prática de algumas posturas de Yoga, sendo minimamente racional, comporta benefícios. Nas suas formas dominantes de exercício de alongamento e aeróbico, nutre o corpo, mitiga o stress endémico. Tem portanto as valências positivas de qualquer outro exercício físico, acrescendo a “vantagem” de implicar uma atitude meditativa, o aspecto que traça a distinção. Ademais, a prática de āsana é particularmente positiva se for centrada na respiração. Quanto ao valor atribuído às posturas, começará a montanha russa. Funcionalmente, há inúmeras posturas que deviam ser sujeitas a um escrutínio à luz da ciência da motricidade por serem no mínimo discutíveis, senão lesivas. O contorcionismo é prejudicial, isso é unânime. Ora há posturas de Yoga que são puro contorcionismo. Que venha alguém abalizado na matéria e prove que Vṛśchikāsana (Escorpião), Setu Bandhāsana (Ponte-Atada), Dvi Pāda Viparīta Daṇḍāsana (Bastão-Invertido-aos-Dois-Pés) e Śīrṣa Pādāsana (Cabeça-aos-Pés) possuem um benefício real, não se limitando a destruir a espinha dorsal. Fisiologicamente, há um leque de benefícios que lhe são popularmente atribuídos, de viscerais a endócrinos, mas que não possuem qualquer base de sustentação. Normalmente são defendidos, em rigor vendidos, por quem lucra com a aceitação acrítica dessas crenças: seja por aproveitamento seitoso ou mera exploração económica. Psicologicamente, não é a execução per se de um conjunto de posturas físicas, sobretudo se desvinculadas de um esforço de concentração, que vai fazer com que sintamos verdadeiro bem-estar, mesmo que algures se crie essa profecia autoconfirmatória! Também nos sentiremos melhor se formos ao ginásio ou corrermos pelo campo. Tudo depende da atitude inerente ao exercício. Soteriologicamente, por exemplo, não vai ser a prática de uma invertida durante minutos a fio que nos vai tornar menos ego-centrados, mais eco-orientados, em última instância iluminados. Aliás, pode até ter o efeito inverso, a partir do momento em que se cai na pretensão.
Sttobaerts, em Reflexão sobre o Yoga, adianta uma ideia que poderá acolher a prática de Yoga, positivamente. Concretamente, defende a existência de dois níveis de prática: um terapêutico ou catártico e outro soteriológico; porém, num caso e noutro, jamais abdicando da natureza contemplativa da prática. Na primeira fase, a pessoa pratica āsana, para sanear corpo e mente de toxinas acumuladas. Na segunda fase, há um objectivo soteriológico, ou seja, visa a libertação da existência condicionada, que no fundo é “só” o hábito de estamos sistematicamente identificados com as ideias que povoam o nosso aparelho psíquico. Numa fase ou noutra, o que traz resultados é à natureza meditativa dos exercícios.
Portanto, voltemos a frisar, a saber uma postura física só é āsana se tiver uma componente meditativa. Esse será o principal “benefício” a extrair. Todavia isto é frequentemente ignorado e até desconhecido pelos “praticantes” e professores! O objectivo das posturas não é funcionar como uma morfina dos infelizes (“só me sinto bem quanto estou na postura do lótus”), ou uma vitamina dos narcísicos (“estou a praticar com um grau de alinhamento e perfeição corporal sem precedentes, sou irrepreensível!”), ou uma fonte de rejeição (“não tenho flexibilidade para fazer yoga, jamais experimentarei!”). Isso seria a antítese do Yoga.
Joel Machado
(Extensões da coluna por BKS Iyengar | Fotos/Créditos: Don Mike Anthony & Light on Yoga)
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