(Artigo de Reflexão) ahaṅkāra | अहङ्कार | ego

Ahaṅkāra, do sânscrito, traduz-se para o português como “ego”. Corresponde assim ao auto-conceito, o constructo de identidade própria. Devido a isso, o termo serve frequentemente para definir ideias negativamente conotadas, tais como “egoísmo”, “individualismo”, “orgulho” e “arrogância”.

Na proposta de Aparelho Psíquico veiculada pelo Yoga Hindu, antaḥkaraṇa ou Instrumento Interno, ahaṅkāra é uma das principais funções psicológicas, juntamente com manas (cognição e percepção sensorial), citta (armazém de predisposições emocionais-mentais), e buddhi (intelecção discriminadora).  

Na sua relação com os restantes funções do Aparelho Psíquico (muitas vezes simplesmente denominado “mente”, devido à tradução do termo inglês “mind”), antaḥkaraṇa dá-nos a sensação de separação relativamente ao mundo em redor, determinando a percepção de individualidade. Tudo o que assumimos como sendo “real” em relação a nós, do nome à compleição física, da raça à personalidade, da história pessoal à história colectiva, é essencialmente um produto de ahaṅkāra.

Ora, esta instância psicológica tem um peso extraordinário na Era que vivemos, devido ao facto de toda a nossa educação ser orientada ao individualismo: a criança, desde os primórdios do seu desenvolvimento psicofísico, é condicionada a identificar-se com a imagem criada de si própria; isto não seria grave se o processo de individuação fosse além, mas o problema é que não vai, formando-se adultos com a inteligência emocional de infantes de três ou cinco anos. Isso não é mais que um reflexo das sociedades e culturas actuais serem orientadas à egolatria, ao individualismo, redundando na opção da competição em detrimento da cooperação. Não é difícil reconhecer que os feitos individuais tendem a ser mais valorizados do que os colectivos. As consequências dessa opção são as que podem ser observadas: fome, miséria, escassez de recursos, caos social e ambiental.

Ironicamente, esta fixação no individualismo faz com que se gerem fenómenos grupais bestiais. Isso faz sentido porque, extrapolando, o ego-colectivo acaba por ser o reflexo dos egos-pessoais que formam o grupo. O resultado pode ser funesto. Por exemplo, os fenómenos de desresponsabilização pessoal, como os registados nas sociedades genocidas, ao longo da História, em todos os cantos do mundo, hão-de ter esta mecânica insalubre por detrás de si: a desmotivação ou incapacidade em vestir a pele do outro, assumindo que a sobrevivência de uma parte depende necessariamente da eliminação da outra, o que é quase sempre falso.

O ego, em si, não é “bom” nem “mau”. Fora dessa dicotomia, erige-se como um instrumento psicológico, fundamental à nossa sobrevivência no mundo físico. Neste enquadramento, não há diferença entre o ego e as pernas, ambos cumprem o seu propósito, funcional. O dilema, como foi dito, é que o nosso Aparelho Psíquico é educado a tê-lo como locus de funcionamento. A tendência endémica dos humanos para agir quase exclusivamente pelo bem de si próprio, nem que isso acarrete o mal do próximo, deriva desse dilema. A resolução passará, por ventura, numa reorientação da educação: passar do foco no “umbigo” para o foco na interdependência. Tão importante quanto ensinar a uma criança o seu nome e os “limites” do seu corpo, é ensina-la o alcance das suas acções e que tudo e todos, animais e vegetais, estão interligados. Deve ensinar-se que o infortúnio de uma parte é o desequilíbrio do todo. A base desta pedagogia assentará na transmissão de um pressuposto meditativo que de religioso nada tem: ensinar o individuo a desidentificar-se do seu ego, pensamentos e emoções, treinando a atenção disciplinadamente dentro dos pressupostos da Ética.


Joel Machado



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