A Agostinho da Silva e Raimon Panikkar
Paulo Borges
(Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)
1. Repensar as relações entre Oriente e Ocidente
A fixação e reificação das antinomias conceptuais torna difícil compreender a visão de Platão, no Sofista, da participação mútua das ideias ou da comunicação dos géneros [1] - como, já para além da classificação platónica, os de ser e não-ser, mesmo e outro, identidade e diferença - , que mostra cada um deles constitutivo do outro, não apenas em termos de relação externa, mas sobretudo de determinação interna. Ser, mesmo e identidade não só apenas se concebem perante o não-ser, o outro e a diferença, mas surgem ainda, respectivamente, como o não ser do não-ser, o outro do outro e a diferença da diferença. O mesmo se pode afirmar em sentido inverso. É este também o ensinamento de Lao Tse: “Ser e não ser nascem um do outro” [2].
A mesma fixação e reificação das antinomias conceptuais, esquecendo a sua correlação, faz com que as identidades culturais e civilizacionais tendam a ver-se como compartimentos estanques, ou como essências e entidades intrinsecamente definidas que só se relacionam exteriormente, e não como processos em aberto, em metamorfose, interdependentes, porosos e osmóticos. Isto enfatiza-se nas leituras identitárias das culturas e das civilizações e manifesta-se a todos os níveis da experiência humana, primeiro que tudo na construção de uma ideia e sentimento de si ou identidade pessoal como entidade que se afirma distinta e separada de outras entidades e do jogo do mundo que conceptualiza como outro, apesar de ser dele absolutamente inseparável e interdependente. O essencialismo platónico e o substancialismo aristotélico, com os seus equivalentes noutras tradições, muito contribuíram para isto, mas sempre por esquecimento da subtil lição platónica no Sofista. As noções de haver um Oriente e um Ocidente, como áreas culturais e civilizacionais bem definidas e distintas, reflectem esta reificação conceptual típica da mente humana quando se reduz ao pensamento judicativo e discriminativo que não se auto-questiona nem supera.
Terá sido, curiosamente, o mesmo Platão que muito terá concorrido para tal ao, no mesmo Sofista, ter avançado a célebre definição do pensamento como “um diálogo da alma consigo mesma” que se processa silenciosamente sob a forma da afirmação e da negação, ou seja, do “juízo”, visto como “a realização final do acto de pensamento” [3]. Esta orientação e determinação judicativa e afirmativa-negativa da mente acabou por ser assumida como uma das características fundamentais do pensamento ocidental, sobretudo após a deriva do pensamento platónico, que troca a sabedoria (sophia) pelo conhecimento científico (epistémé) [4], por contraste ou oposição com o pensamento oriental que se manteria mais vocacionado para a suspensão do juízo no silenciamento contemplativo ou para a indeterminação e obscuridade do discurso mitopoético e religioso. Estas caracterizações genéricas são obviamente simplificações, que não dão conta da vastidão e complexidade do que se designa como pensamento ocidental e oriental, etiquetas fáceis que recobrem muitos séculos e expressões cultural e filosoficamente muito diversas. Bastará recordar os sistemáticos tratados lógico-filosóficos da tradição indiana [5] e, no Ocidente, o próprio recurso de Platão ao discurso mitopoético e religioso para sugerir ou expressar níveis de verdade inacessíveis à razão discursiva ou o exemplo de Pirro que, porventura influenciado pelos gimnosofistas indianos ao acompanhar a expedição de Alexandre o Grande, numa dessas porosidades interculturais atrás referidas, acabou por viver retirado buscando a felicidade na ataraxia (despreocupação) pela suspensão do juízo (epoché), considerando que “uma coisa não é mais isto que aquilo”, que os valores humanos não têm existência objectiva e que “nada existe realmente de um modo verdadeiro” [6].
Seja como for, a reificação dos conceitos de Oriente e Ocidente, apesar de ter na origem a percepção de singularidades numa e noutra destas áreas culturais-civilizacionais, acabou quase sempre, do lado ocidental, por ser praticada em desfavor do Oriente, a começar pela célebre tese da exclusividade do “milagre grego” que teria inventado simultaneamente a filosofia e a democracia e que radica no legado grego da “ideia de uma superioridade especial da sua civilização sobre as dos outros povos” [7]. Esta tese resultou na ideia, presente na corrente dominante do pensamento ocidental, de que só há verdadeira filosofia no Ocidente ou na matriz greco-ocidental do pensar (Hegel, Husserl e a ambivalência de Heidegger, entre outros [8]), contribuiu para a “amnésia filosófica” denunciada por Roger Pol-Droit a respeito da Índia [9] e foi um dos vectores do eurocentrismo típico do pensamento ocidental que originou, como mostrou Edward Said, o orientalismo [10], a construção mental de um Oriente primitivo e inferior com a qual se pretendeu legitimar o colonialismo.
Seja como for, a era mundial em que vivemos, misto do processo de descolonização e do neocolonialismo da globalização da matriz civilizacional ocidental [11], não se compadece com o suposto encarceramento da filosofia no triângulo fechado cujos vértices são Roma, Atenas e Jerusalém, exigindo pensar interculturalmente, a começar por explorar a fecundidade da preposição entre [12], ou praticar o que Françoise Dastur chama “pensamento sem fronteiras” [13]. Se a história do mundo foi até hoje quase sempre escrita na perspectiva de uma civilização ocidental supostamente superior e auto-emergente, obras como The Eastern Origins of Western Civilisation, de John Hobson [14], mostram a sua dependência do Oriente e surge hoje uma nova historiografia, não eurocêntrica nem centrada nas nações, a “história global”, “história-mundo” ou “história conectada” [15], que mostra o protagonismo das culturas não-europeias na história mundial. Esta nova historiografia tem hoje porventura o seu maior representante no historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, autor de um livro de 1997 sobre Vasco da Gama que recontextualiza as chamadas Descobertas à luz das fontes e perspectivas asiáticas [16]. Outra obra de um indiano, Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference [17], mostra aliás que, contrariamente ao que ainda pensam os europeus, a Europa já não ocupa o centro do mundo, estando em processo de provincialização e sendo necessário um descentramento do pensamento europeu para compreender a emergência de outras modernidades culturais com distintas categorias mentais.
2. Respirar entre e para além Oriente e Ocidente
Repensar filosoficamente as relações entre Oriente e Ocidente talvez exija todavia, mais do que simplesmente promover a comparação, o diálogo, o encontro e novas sínteses entre os seus modos de pensar [18], explorar as dimensões da experiência da vida, do ser e da consciência que são transversais e comuns ao ser humano, aquém e além das problemáticas e sempre osmóticas e indeterminadas fronteiras entre culturas, filosofias e religiões, se bem que por estas sejam condicionadas. Referimo-nos a dimensões liminares da experiência humana como o nascer, o morrer, o sofrimento, o amor e a sexualidade, entre outras, mas pretendemos aqui incidir naquela que nos parece mais importante por motivos contrastantes. Por um lado, é a mais discreta e inaparente, por outro é a que algumas das línguas e tradições humanas histórico-culturalmente mais conhecidas consagram como associada à etimologia e semântica das principais designações do princípio vital e de consciência que se manifesta nos seres e que muitas vezes é assumido como de natureza ou origem divina ou sagrada. Referimo-nos à respiração, algo intimamente ligado às entranhas da vida somática, mas que nesta perspectiva revela nelas as dimensões mais subtis da consciência. Todas as tradições espirituais da humanidade a consideram como uma via privilegiada de acesso à realidade primeira e última, mas neste percurso limitar-nos-emos a expor algumas das suas abordagens nas tradições bramânica-hindu e cristã.
2.1. Brahman como “sopro do sopro”
Em contraste com a representação que se tornou corrente no Ocidente, que identifica o cérebro como o lugar da consciência, R. B. Onians mostrou que a noção homérica e grega arcaica do “pensar” é a de uma actividade localizada no coração ou no frénes, os pulmões, nos quais circula o thymós, “o princípio vital que pensa e sente e incita à acção” [19]. A par do thymós, mas dele distinta, como o que perdura após a morte, surge a psyché, mais associada com a cabeça, embora ambos possam ser designados como “alma-sopro” [20]. Este vínculo do sopro não só à vida, mas também à consciência que lhe preside e sobrevive à morte biológica, encontra-se amplamente presente na tradição indo-europeia e semita, nos termos-chave que são pneuma, spiritus, anima, animus, ruâh, ruh, nefesh, alma, ânimo e espírito.
O mesmo acontece na tradição bramânica onde um hino cosmogónico do Rig-Veda apresenta o “Uno” primordial (ekam) a respirar sem sopro, pois no imanifestado nada havia senão “Isso” (Tād) [21], possível referência ao Brahman, o incondicionado. No Atharva-Veda o “sopro da vida” (prāna) preside todavia à manifestação, tornando-se o “Senhor de tudo, no qual todas as coisas estão fundadas”, o animado e o inanimado. Prāna é “quem rege todos os nascimentos, todas as coisas que se movem”. Venerado pelos deuses, é Prajāpati, o “Senhor das criaturas”. A quem o conhecer ser-lhe-á prestado “tributo” no “mais elevado mundo” e o hino conclui invocando prāna para que se transforme naquele que o invoca e se liga com ele, a fim de viver [22]. Em Kaushītakī Upanishad “O sopro da vida (prāna) é Brahman” [23], o que se articula com o facto de, em Kena Upanishad, se referir um “sopro do sopro” [24] que é aquilo pelo qual se respira e que é igualmente Brahman. O texto acrescenta: “e não o que é aqui honrado como tal” [25], o que comentaremos mais adiante. No seu comentário a esta passagem, Śankara considera que o sustento da vida é o Ser, citando Taittirīya Upanishad (II, 7, 1), que indica que o inspirar e expirar são possíveis pela presença do Brahman no “grande Espaço (do coração)” [26]. O nome que assume este princípio cósmico e absoluto enquanto presente em cada ser vivo individual é ātman, que no Brhadāranyaka-Upanishad se diz assumir diferentes nomes consoante as suas sempre parciais manifestações nas diversas funções e “obras (karma)”, sendo no Si que todas elas se unificam: “Quando o respirar é nome, é sopro; quando é falar, é voz; quando é ver, é o olho; quando é escutar, é o ouvido; quando é pensar, é a mente” [27].
Segundo o Chāndogya Upanishad, o sopro vital determina os movimentos da mente, que dele é “cativa”, sendo nele que se reabsorve no momento da morte, tal como o sopro se reabsorve em dimensões mais subtis do ser e finalmente na mais “elevada” e “mais fina essência” que é o ātman do “inteiro universo” e de cada indivíduo: Tat tvam asi (“Isso tu és”) é a célebre grande palavra (mahāvākya) com que um pai brâmane procura despertar o seu filho, instruído no conhecimento dos Vedas, mas ignorante do essencial [28]. No mesmo texto, o ātman-Brahman que é o “sopro do sopro” é o “espaço dentro do coração”, simultaneamente “minúsculo” e “tão vasto como este espaço (à nossa volta)”, no qual todo o cosmos está contido. É esse o verdadeiro objecto de todo o desejo, que torna quem o encontra livre de todo o condicionamento [29], um jivanmukta, “liberto em vida”.
Compreende-se assim que outros Upanishads ofereçam exercícios meditativos práticos que visam o reconhecimento da realidade original e não-dual de si e do mundo mediante a atenção pousada na respiração e no subtil sopro vital (prāna) dela inseparável. No Dhyānabindu Upanishad a respiração é assimilada à própria trimūrti, a divina tríade, sendo a inspiração Brahma, a retenção Vishnu e a expiração Rudra (Śiva) [30]. Pela sua prática com a mente concentrada “num único ponto” o adepto domina o pensamento e “reúne progressivamente / todas as suas faculdades mentais / na cavidade secreta / situada no lótus do coração” [31]. Segundo o Yogakundalinī Upanishad, meditar na respiração permite despertar a energia espiritual e vital concentrada na base da coluna, a kundalinī, que sobe pelo canal subtil central (sushumnā) activando os centros psicovitais (chakras) e fazendo com que resplandeça o corpo subtil “feito de pura consciência”, o qual coincide com o “Ātman universal, / presente em todos os seres”. É nisso que consiste a “Libertação”, pela qual se reconhece a “unidade fundamental” de si com “todo o universo” [32].
Como se diz no Hatha-Yoga-Pradipīkā, comentado por Brahmānanda, devido à inseparabilidade do sopro vital e da mente, a condução do primeiro para o canal central permite a reabsorção da mente (manas) e da vida psíquica (citta) condicionadas pelas tendências subliminais (vāsanā) deixadas pelas acções anteriores, que geram sem cessar as ondulações ou turbilhões psicomentais (vrtti) que obscurecem a luz natural da consciência, velando a sua unidade com a realidade primordial. Pelo processo da meditação yógica no sopro, a reabsorção (laya) do prāna dissolve a mente dualista e as tendências subliminais que a sustentam, permitindo o conhecimento experiencial e directo, no samādhi, ou ênstase [33], do fundo sem fundo do real [34], o Brahman sem características [35], livre dos conceitos de vazio (shunya) e não-vazio (ashunya), de ser (sat) e não-ser (asat), de existência (bhāva) e não-existência (abhāva). Como diz o comentário de Brahmānanda: “Então o yogi, livre de toda a tomada de posição intelectual, torna-se perfeitamente identificado ao Brahman” [36]. Constatamos que aqui se opera, por via do hatha-yoga, ou seja, pelo “yoga da força” ou da “unificação do Sol (Ha) e da Lua (Tha)”, as polaridades de toda a manifestação [37], o mesmo silenciamento da proliferação mental-verbal, solidária da aparência de um mundo de entidades e objectos, ao qual também se chega, na tradição budista, e entre outras vias, pela dialéctica desconstrutiva de Nāgārjuna, que nas Madhyamaka-kārikās reduz ao absurdo todas as teses e teorias possíveis, incluindo as budistas, suspendendo toda a possessividade intelectual: “Bem-aventurada a pacificação de todo o gesto de apropriação, a pacificação da proliferação das palavras e das coisas” [38].
A experiência da ausência de conceitos de vazio e não-vazio é todavia a de um vazio não-conceptual inseparável da consciência e da beatitude [39], no qual o yogi se sente apenas como “Espaço” (kha), designação e símbolo do Brahman no Vedānta [40]. Vive assim numa experiência directa as mahāvākya dos Upanishads e desmonta a egofacção, o ahamkāra, ou seja, o princípio de individuação [41]. A experiência meditativa e yógica da respiração converte assim essa mesma condição de possibilidade da vida biologicamente individualizada e condicionada na transcensão definitiva dessa condição e condicionamento, convertendo um mero ser vivo (jivan) num jivanmukta, um liberto em vida.
2.2. Respirar Deus, sendo por Deus respirado
Verifiquemos se na tradição ocidental existe uma convergente assunção da respiração como via para o bem último, investigando a tradição cristã. Pesem todas as diferenças doutrinais e teológicas entre as ideias de Brahman e do Deus cristão, não podemos deixar de reconhecer que ambos se podem traduzir filosoficamente como o Infinito, conforme a célebre definição n’O Livro dos XXIV Filósofos: “Deus est sphera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia vero nusquam” (“Deus é a esfera infinita cujo centro está em todo o lado e a circunferência em lugar algum”) [42]. Isto emancipa Deus de qualquer entificação e consequente dualidade, permitindo que Mestre Eckhart o veja como um “Nada (Nichts)” [43], “simples”, “vazio e livre” de toda a forma [44], que por isso transcende todos os limites da sua re-velação, manifestação e compreensão, sejam os das religiões, teologias, filosofias ou templos. É porventura por isso que Cristo, no encontro com a Samaritana, afirma que os “verdadeiros adoradores”, que Deus-Pai procura, são os que não adorarão a Deus neste ou naquele local físico e exterior, mas sim “èn pneumati kai aléthéïa”. Traduzido habitualmente como “em espírito e verdade” (João 4: 21-24), Jean-Yves Leloup vai ao sentido profundo do texto grego e vê nele a exortação a que se ore ou adore no “Sopro” (Pneuma) e fora de todo o “esquecimento” (léthè) ou ““letargia” da consciência”, num “estado de despertar e de vigilância, numa memória ininterrupta do Ser”, recordando que os Padres da Igreja verão no Pneuma o Espírito Santo e na aléthéïa o Cristo [45]. Sendo Deus o Espírito, ou seja, o Sopro (ruâh, spiritus) [46] que anima todos os viventes com nephesh, o sopro vital ou alma, a verdadeira experiência do Infinito que se designa como Deus dar-se-ia assim, em flagrante afinidade com o que vimos na tradição indiana acerca do Brahman, na dimensão subtil e espiritual, mas vital, energética e incarnada, da reSpiração e na abertura ou des-ocultamento da consciência (a-léthéïa), e não na exterioridade do comum culto religioso ou no regime intelectual do discurso teológico-filosófico, que tende a reduzir o divino a mero objecto do pensamento abstracto e conceptual. Por isso São Paulo recorda que “o (...) corpo é templo do Espírito Santo” (1 Coríntios, 6, 19). O Infinito manifesta-se e experiencia-se mais imediata, íntima e plenamente no que respira e é vivo, humano ou não - pois humano e animal “têm o mesmo alento” (Eclesiastes, 3: 19) - , do que nas mais belas e monumentais obras da cultura e da civilização, incluindo os templos exteriores, que jamais poderão conter o ilimitado a que todavia se acede entrando no fundo do coração, pois aí reside o Deus que, segundo Santo Agostinho, é “interior intimo meo” [47], mais íntimo do que a minha intimidade. Cristo, ao ensinar à Samaritana que os “verdadeiros adoradores” são os que encontram Deus no subtil sopro divino e na consciência a ele aberta, converge com o ensinamento do Kena Upanishad, acerca de Brahman ser o “sopro do sopro” [48] “e não o que é aqui honrado como tal” [49], porventura as suas manifestações nos templos e representações externas das divindades.
É por isso que na oração hesicasta [50], segundo o mais antigo testemunho deste método por Nicéforas, o Solitário, o praticante deve sentar-se, recolhendo o “espírito”, ao inspirar, nas narinas e no caminho do “sopro” para chegar ao coração, mantendo-se depois aí para se unir à “alma”, o que resulta na “alegria” e “delícias inefáveis” de quem regressa a si, pois aí está o “Reino de Deus”. É então que se deve meditar banindo “todo o pensamento” e orando sem cessar: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim!”. Assim se abrirá o coração à Presença divina que lá reside e todas as virtudes surgirão [51]. São Gregório Palamas, defendendo este método veiculado por Evagro Pôntico, João Clímaco e os Padres e Madres do Deserto, considera ser “absolutamente necessário reenviar ou manter o intelecto dentro do corpo quando se decide pertencer verdadeiramente a si mesmo e tornar-se um monge que merece o seu nome, segundo o homem interior”. É controlando e retendo o “sopro” que se fixa o que há de mais “móvel” e “difícil de contemplar”, o “espírito”, purificando-o da distracção e reconduzindo-o a “um recolhimento unificado” [52]. Assim se acede, segundo São Isaac, o Sírio, à não-perturbação (apatheia), à caridade e à misericórdia a respeito de toda a natureza e de todos os seres, que por sua vez conduzem ao “verdadeiro conhecimento (gnôsis) ou contemplação (theôria)” de Deus em si e em tudo [53], pelo qual todo o ser humano, incluindo o corpo, é impregnado pelas “energias divinas incriadas”, espiritualizado e divinizado [54].
Na experiência cristã o Infinito é Espírito, imprevisível e insubstancial, e todo o que dele nasce é como o “vento” que “sopra onde quer”, sem que ninguém saiba “de onde vem / nem para onde vai” (João, 3: 4-8), pois não tendo lugar está em toda a parte. Isto só o vivente pode experienciar, pois nele conscientemente perpassa o fluxo do Sopro que tudo permeia. Por isso o “Reino de Deus” - que nas interpretações profético-messiânicas é o que está por vir, mas na tradição e experiência contemplativas é o próprio Deus/Cristo e a sua presença a cada instante adveniente no mundo e no íntimo dos que a ela se abrem, configurando um “messianismo do Instante” [55] - não está “aqui” ou “ali”, mas sim “entre” ou “no meio” dos viventes (Lucas, 17: 20-21). Ou seja, não se encerra nos limites que aparentemente os constituem ou configuram, não se confina nas formas recortadas no espaço ou fundo que torna possível a sua percepção, mas é esse mesmo espaço infinito ou comum fundo sem fundo que possibilita e onde se entretecem todas as formas, coisas e fenómenos do mundo. Esse espaço ou fundo infinito é Deus, a matriz de tudo (alguns representantes das tradições judaica e cristã começam a repensar Deus segundo a simbologia feminina, vendo-o como o “útero” de toda a criação, a ele unida por um cordão umbilical que jamais pode ser cortado [56]). Como diz São Paulo: “nele vivemos, nos movemos e existimos” (Actos dos Apóstolos, 17, 28). Na nossa leitura isto significa não só que nele respiramos, mas que é Ele mesmo que respiramos na medida em que, primordialmente, em nós respira, respirando-nos. É o Espírito, ātman, ruâh, pneuma, spiritus, que em nós, sem pulmões, inspira e expira, na medida em que é simultaneamente o infinito espaço sem limites e a matriz vital e energética de toda a criação. Como diz Jean-Yves Leloup, é o “Sopro que nos leva” [57].
3. Respirar, entrar no corpo, transcender Oriente e Ocidente
Concluindo, podemos considerar que tal como kha, o espaço aberto e vazio, é na tradição hindu o melhor símbolo do Brahman, assim o Céu surge na tradição cristã como a imagem que melhor sugere o Infinito, desde que o não imaginemos como algo transcendente, no sentido de exterior e separado, que está “lá em cima”, mas antes o reconheçamos como o “englobante” (Umgreifende) de que fala Karl Jaspers [58], o envolvente espaço primordial, de consciência e vida, no seio do qual a cada instante estamos imersos, percepcionamos e respiramos, sendo esta abertura informe e acolhedora onde precisamente “vivemos, nos movemos e existimos”. Por isso São Mateus fala do Reino dos Céus como sinónimo de Reino de Deus, registando as primeiras palavras de Cristo como continuadoras das de João Baptista: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mateus, 4: 17). O arrependimento é aqui, literalmente, o inclinar-se em sentido oposto, o arrepiar caminho e ir contra-a-corrente das tendências e dos hábitos instalados, a reviravolta da consciência e da vida, a conversão ou metanóia [59]pela qual a atenção e o desejo se libertam da reclusão no aparente limite das formas e dos objectos, materiais ou mentais, sensíveis ou inteligíveis, para despertarem, renascerem ou ressuscitarem no Infinito divino onde jamais ocorreu a cisão entre ser e verdade ou sujeito e objecto. Isto corresponde ao que na linguagem do Yoga se chama nivrtti, o regresso à contemplação do divino em si, por contraste com pravrtti, a distracção e dispersão da atenção no mundo externo e nos objectivos mundanos.
A metanóia cristã, o nivrtti yógico ou o seu equivalente laico podem processar-se, como vimos, pelo recolhimento da consciência na respiração ou sopro da vida que conduz à experiência directa do seu fundo sem fundo, o Infinito ou a Vida Plena. Aí convergem duas vias a que se convencionou chamar ocidental e oriental, cristã e hindu, e com elas muitas outras – indígenas, budista, daoista, judaica, islâmica, etc. - , com métodos similares e convergentes, que visam sempre remover a mente da dualidade, parcialidade e finitude conceptuais para a não-dualidade, totalidade e infinidade do real e nisso se mostram igualmente universais, ou seja, passíveis de ser praticadas por todos os seres humanos [60]. Ao percorrê-las, podemos partir do Ocidente ou do Oriente geográficos ou culturais, mas no caminho temos de deixar para trás os conceitos de Ocidente e Oriente, e com eles todos os conceitos, a começar pelo de si mesmo e de outro, para chegarmos à experiência do Infinito e da totalidade. Infinito e totalidade não já como meras ideias filosóficas, mas como evidências fenomenológicas de uma consciência entranhada na respiração e no corpo ao ponto de vivenciar que este nosso corpo-consciência é já um corpo-consciência cósmico e infinito e que é das profundezas abissais destes nossos corpos-consciências que se fala quando se fala da Vida Eterna e se diz do Corpo Místico de Cristo, o Cristo Cósmico, “que plenifica tudo em tudo” (Efésios, 1: 23) e devém “tudo em todos” (1 Coríntios, 15: 28), ou quando se diz que todo aquele que reconhecer ser Brahman “se torna este inteiro (universo)”, convertendo-se no próprio ātman dos deuses [61]. Pois, “na verdade, todo corpo é o universo” (Mahanirvana Tantra) e isso não tem Ocidente nem Oriente.
(Foto: Paulo Borges)
[1] Cf. PLATÃO, Sofista, 249e – 261c.
[2] Cf. Lao TSE, Tao Te King, tradução e comentário de António Miguel de Campos, Lisboa, Relógio D’Água, 2010, p.51.
[3] Cf. PLATÃO, Sofista, 263d – 264b.
[4] Cf. Id., Teeteto, 145 e.
[5] Cf. Willhelm HALBFASS, Indien und Europa, Perspektiven ihrer geistigen Begegnung, Basel/Stuttgart, Schwabe Verlag, 1981; Roger-Pol DROIT, L’Oubli de l’Inde. Une amnésie philosophique, Paris, PUF, 1989, edição revista e corrigida; Guy BUGAULT, L’Inde pense-t-elle?, Paris, PUF, 1994; Richard KING, Indian Philosophy. An Introduction to Hindu and Buddhist Thought, Edinburgh, Edinburgh University Press, 1999; Michel HULIN, Comment la philosophie indienne s’est-elle développée? La querele brahmanes-bouddhistes, Paris, Éditions du Panama, 2008; Fernando TOLA / Carmen DRAGONETTI, Filosofía de la India. Del Veda al Vedanta. El sistema Samkhya. El mito de la oposición entre “pensamento” índio y “filosofia” ocidental, Barcelona, Editorial Kairós, 2008.
[6] Cf. Diógenes LAÉRCIO, Vie, Doctrines et Sentences des Philosophes Illustres, II, tradução e notas de Robert Genaille, Paris, Garnier Frères, 1965, p.191.
[7] Cf. Roger-Pol DROIT, O que é o Ocidente?, Lisboa, Gradiva, 2009, p.27.
[8] Cf. Françoise DASTUR, Figures du Néant et de la Négation entre Orient et Occident, Paris, Les Belles Lettres, 2018, pp.9-19 e 24-28.
[9] Cf. Roger-Pol DROIT, L’Oubli de l’Inde. Une amnésie philosophique.
[10] Cf. Edward W. Said, Orientalism, Vintage, 1979.
[11] Cf. Serge LATOUCHE, L’Occidentalisation du Monde, Paris, La Découverte, 2005.
[12] Cf. François JULLIEN, L’Écart et l’Entre. Leçon inaugurale de la Chaire sur l’altérité, Paris, Éditions Galilée, 2012.
[13] Cf. Françoise DASTUR, Figures du Néant et de la Négation entre Orient et Occident, p.9.
[14] Cf. John M. HOBSON, The Eastern Origins of Western Civilisation, Cambridge University Press, 2004.
[15] Cf. Kenneth POMERANZ, The Great Divergence: China, Europe, and the Making of the Modern World Economy, Princeton University Press, 2001, edição revista.
[16] Cf. Sanjay SUBRAHMANYAM, The Career and Legend of Vasco da Gama, Cambridge University Press, 1997.
[17] Cf. Dipesh CHAKRABARTY, Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference, Princeton University Press, 2000.
[18] Cf. Paulo BORGES, Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas. Estudos e ensaios sobre espiritualidade, religião, diálogo inter-religioso e encontro trans-religioso, Lisboa, Âncora Editora, 2018.
[19] Cf. Richard Broxton ONIANS, The Origins of European Thought about the Bodya, the Mind, the Soul, the World, Time, and Fate, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, pp.13-14 e 23-28.
[20] Cf. Ibid., pp.93-96.
[21] Cf. Rig-Veda, X, 129, in Hymnes Spéculatifs du Véda, traduzidos do sânscrito e anotados por Louis Renou, Paris, Gallimard/Unesco, 1985, p.125.
[22] Cf. Atharva-Veda, XI, IV, 1-26, in Hindu Scriptures, traduzidas e editadas por R. C. Zaehner, Londres, Everyman’s Library, 1992, pp.33-36.
[23] Cf. Kaushítakí Upanishad, II, 1, in Ibid., p.191.
[24] Cf. Kena Upanishad, I, 2, in Ibid., p.204.
[25] Cf. Ibid., I, 9, p.205.
[26] Cf. ŚANKARA, citado in Upanisad com los comentários advaita de Śankara, edición de Consuelo Martín, Madrid, Editorial Trotta, 2000, p.41.
[27] Brhadāranyaka-Upanishad, I, 4, 7, in Hindu Scriptures, p.43.
[28] Cf. Chāndogya Upanishad, VI, VIII, in Hindu Scriptures, pp.136-138.
[29] Cf. Chāndogya Upanishad, VIII, I, in Ibid., pp.155-156.
[30] Cf. Dhyānabindu Upanishad, 21, in Upanishads du Yoga, traduzidos do sânscrito, apresentados e anotados por Jean Varenne, Paris, Gallimard/Unesco, 2012, p.74.
[31] Cf. Dhyānabindu Upanishad, 100, in Ibid., p.91.
[32] Cf. Yogakundalinī Upanishad, 73-87, in Ibid., pp.102-105.
[33] Cf. Mircea ELIADE, Le Yoga. Immortalité et Liberté, Paris, Payot, 1991, pp.89-94.
[34] Cf. Hatha-Yoga-Pradipīkā, Traité de Hatha-Yoga, 20-25, introdução, tradução e comentários por Tara Michaël, prefácio de Jean Filliozat, Paris, Fayard, 2018, pp.240-242.
[35] Cf. Ibid., 33, p.245.
[36] Cf. Ibid., 37, pp.248-250.
[37] Cf. Tara MICHAËL, “Introdução” a Hatha-Yoga-Pradipīkā, Traité de Hatha-Yoga, p.19.
[38] NĀGĀRJUNA, Stances du Milieu par Excellence, 25, 24, traduzido do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bougault, Paris, Gallimard, 2002, p.334.
[39] Cf. Hatha-Yoga-Pradipīkā, Traité de Hatha-Yoga, 37-38, pp.248-250.
[40] Cf. Ananda K. COOMARASWAMY, “Kha y otras palabras que significan “cero” em relación com la metafísica india del espacio”, in El Vedānta y la Tradición Occidental, tradução de Agustín López e María Tabuyo, Madrid, Ediciones Siruela, 2001, pp.255-266.
[41] Cf. Hatha-Yoga-Pradipīkā, Traité de Hatha-Yoga, 50 e 55-56, pp.256 e 258-259.
[42] Cf. Le Livre des XXIV Philosophes, traduzido do latim, editado e anotado por Françoise Hudry, prefácio de Marc Richir, Grenoble, Éditions Jerome Millon, 1989, pp. 93 e 95.
[43] Cf. Mestre ECKHART, Predigten. Traktate, Werke, II, 71, textos e versões de Ernst Benz, Karl Christ, Bruno Decker, Heribert Fischer, Bernhard Geyer, Josef Koch, Josef Quint, Konrad Weib e Albert Zimmermann, editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt am Main, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.65.
[44] Cf. Mestre ECKHART, Predigten. Werke, I, 2, textos e versões de Josef Quint, editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt am Main, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.65.
[45] Cf. Jean-Yves LELOUP, L’Évangile de Jean, traduzido e comentado por Jean-Yves Leloup, Paris, Albin Michel, 1989, p.268.
[46] Cf. Father Thomas KEATING e Rabbi Zalman SCHACHTER-SHALOMI, The Kiss of God. A Dialogue on Science, Mysticism, & Spiritual Practice, Boulder, Albion-Andalus, 2020, pp.14 e 16.
[47] Santo AGOSTINHO, Confissões, III, VI, 11, edição bilingue, tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, introdução de Manuel Barbosa da Costa Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel Barbosa da Costa Freitas e José Maria Silva Rosa, Lisboa, Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, pp.100-101.
[48] Cf. Kena Upanishad, I, 2, in Hindu Scriptures, p.204.
[49] Cf. Ibid., I, 8, in Ibid., p.205.
[50] Cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée, Paris, Albin Michel, 1990.
[51] Cf. NICÉFORAS, o Solitário, Traité de la sobriété et de la garde du coeur, 2, in Placide DESEILLE, La Spiritualité Orthodoxe et la Philocalie, Paris, Albin Michel, 2003, pp.207-209.
[52] Cf. São Gregório PALAMAS, Défense des saints hésychastes, tríade 1, 7-8, in Placide DESEILLE, La Spiritualité Orthodoxe et la Philocalie, pp.209-210.
[53] Cf. São ISAAC, o Sírio, Homélies, 35, 65 e 74, in Placide DESEILLE, La Spiritualité Orthodoxe et la Philocalie, pp.216-217.
[54] Cf. São Gregório PALAMAS, Défense des saints hésychastes, 2, 5-7, in Placide DESEILLE, La Spiritualité Orthodoxe et la Philocalie, pp.178-179.
[55] Cf. Jean-Yves LELOUP, in L’Apocalypse de Jean, traduzido e comentado por Jean-Yves Leloup, Paris, Albin Michel, 2011, p.43.
[56] Cf. Father Thomas KEATING e Rabbi Zalman SCHACHTER-SHALOMI, The Kiss of God. A Dialogue on Science, Mysticism, & Spiritual Practice, Boulder, Albion-Andalus, 2020, pp.13-14.
[57] Cf. Jean-Yves LELOUP, L’Assise et la Marche, Paris, Albin Michel, 2011, p.220.
[58] Cf. Karl JASPERS, La Fe Filosófica ante la Revelación, tradução de Gonzalo Díaz y Díaz, Madrid, Editorial Gredos, 1968, pp.104-106; Iniciação Filosófica, tradução de Manuela Pinto dos Santos, Lisboa, Guimarães Editores, 1998, 9ª edição, pp.33-42.
[59] Cf. Jean-Yves LELOUP, Métanoïa. Une révolution silencieuse, Paris, Albin Michel, 2020.
[60] Cf. AAVV, Meditations for Interspiritual Practice. A collection of practices from the world’s spiritual traditions, edição de Netanel Miles-Yépez, prefácio de Edward W. Bastian, Boulder, Albion-Andalus, 2015, 2ª edição.
[61] Cf. Brihadāranyaka–Upanishad, I, IV, 10, in Hindu Scriptures, p.44.
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