A Mestiçagem Cultural e Soteriológica na Génese do Haṭha Clássico

Após uma revisão de Literatura (1), com algum consenso, podemos dever as origens, desenvolvimento e consolidação do Haṭha Clássico (2), a um processo de mestiçagem cultural que dimana de cinco fontes de influência, ao longo de séculos (3), em última análise milénios, se atendermos ao período pré-Haṭha:
1. Espiritualidade Aborígene da Índia;
2. Tradições Ascéticas;
3. Alquimia Indiana e forânea;
4. Budismo;
5. Śaivismo, Vaiṣṇava e Tantra.

O papel da Espiritualidade Aborígene da Índia, concretamente nas figuras dos Cultos à Deusa Mãe (4) e Xamanismo, foi fundamental no delinear do percurso soteriológico e espiritual Hindu, na medida em que baseou uma série de pressupostos e práticas que se adoptaram e incrementaram ao longo do tempo; concretamente, Mircea Eliade (5) refere, aspectos como o desmembramento ritual, enquanto representação da destruição do ego; a descida ao inferno, enquanto símbolo do encontro com a sombra; a geração de calor interno, na base de ideias como o conceito de kuṇḍalinī; o desenvolvimento de uma panóplia de super-poderes que encontra o seu paralelo desenvolvido na ideia de siddhi-s; e o voo xamânico, associado ao acto figurativo, ou literal, de levitar no ápice da prática espiritual ou contemplativa. Naturalmente, esta influência fez-se repercutir no Haṭha.

As Tradições Ascéticas, que parecem remontar há milénios, na medida em que desde os Veda-s ao Mahābhārata ocorrem registos de executantes de grandes austeridades, os muni-s praticantes de Tapas (6). De facto, este tem sido um dos argumentos de Mallinson (7), considerando que a tónica física, ao nível de pressupostos e fundamentalmente de técnicas que encontramos no Haṭha Clásssico, é uma herança directa das práticas dos ascetas, associando também este legado à sua origem por transmissão oral.

Outra fonte de influência será, com grande certeza, a Alquimia Indiana (Rasāyana) e Forânea (8), um aspecto também explorado por Eliade (9) e desenvolvido como tema central de investigação em D. G. White (10). O que se verifica é que nas linhagens tidas como originárias do Haṭha, os 84 Siddha-s e os 9 Nāth-s (11), estas figuras individual ou colectivamente, são muitas vezes identificadas como Alquimistas, não só nos recontos da Tradição Oral, mas também em textos de orientação Tântrica e Alquímicos (12). Note-se também, que a própria base da Alquimia acaba vir a tornar-se a do Haṭha: a imortalização do corpo; isto é, atingir a Libertação num corpo físico elevado ao estado de incorrupção e à eternidade; para isto, tanto Siddha-s como Alquimistas, usavam de uma Soteriologia que, no plano grosseiro aplicava práticas físicas e uso de poções, e no plano subtil recorria a técnicas contemplativas. A própria permuta da Alquimia do Médio e Próximo Oriente com a Indiana, acaba por se traduzir na influência (e interesse) Árabe e Persa no que se veio a tornar o Haṭha (13).

A influência do Budismo é também inegável. No espaço da transmissão oral, pela identificação da comunalidade ao nível de certas práticas ascéticas, que vinham sendo praticadas desde o tempo do Buda (e antes) e que são mais tarde adaptadas ao corpus do Haṭha, de maneira a servir não só renunciantes, mas também chefes-de-família (principalmente no sentido de as tornar mais suaves ou “praticáveis”). Ao nível da Tradição textual, a influência do Budismo, na sua vertente Vajrayāna (Mantrāyana ou Tantrāyana), parece clara se virmos o estudo do Amṛtasiddhi (14), que começa nas sua primeiras versões com elementos claramente budistas e que acabam por ser “hinduizadas” à medida que o texto vai sendo posteriormente reescrito.

O Śaivismo, Vaiṣṇava e Tantra, no seu heterogéneo todo, foram um facto de influência gigante e pode ser bem apreendida nos trabalhos de Sanderson, Flood e Mallinson (15). Em termos da linguagem que empresta àquilo que vem a ser conhecido como o corpus do Haṭha; em termos de práticas contemplativas, denominadas saṃketas-s, situadas no espaço do Laya, Nāda e Mantrayoga (genericamente, técnicas de concentração e visualização); a ideia de kuṇḍalinī; o continuar da valorização do corpo. No fundo, diz Mallinson (16) que o processo de formação sincrética do Haṭha é a continuidade do que já havia começado com o Tantra e que se distancia deste, dentro de certo Kaulismo (Paścimāmnāya e Dakṣiṇāmnāya), em resposta à complexificação originada no contexto do Trika.

No todo, obviamente, não se deve, ou sequer pode, destrinçar estas fontes de influência umas das outras, na medida em que se foram interinfluenciando ao longo dos séculos. Assim, parece que o ideal será assumir a ideia de Haṭha como resultado de uma síntese sincrética, naturalmente ocorrida na evolução de um espaço e tempo sócio-culturais; pode dizer-se que a partir de determinada altura do seu período formativo, essa amálgama resultante passou a chamar-se Haṭha, tipificada por um conjunto de pressupostos e práticas (17) constituintes de um corpus relativamente coeso.



Joel Machado



Notas
(1) Mircea Eliade (1958); David Gordon White (1996); Georg Feuerstein (1998); James Mallinson (2011a, 2011b).
(2) O conceito de Haṭha Clásssico é proposto por James Mallinson (2011a), referindo-se ao corpus de princípios e práticas soteriológicas do Haṭha que são sistematizadas por Svatmārāmā, no Haṭhapradīpikā, séc. XV, tendo atrás de si um corpo percursor, denominado Haṭha pré-Clássico, e adiante de si outro posterior, denominado Haṭha pós-Clássico. Esta distinção é baseada num critério textual, isto é com base no enquadramento temporal de vários textos de Haṭha ao longo da sua evolução.
(3) Ao nível das referências textuais, crê-se que o período formativo do Haṭha se situe, no Período Medieval, algures entre os séculos IX e XV (Feuerstein, 1998; Mallinson, 2011a).
(4) Estes cultos serão uma das heranças dos povos Dravidianos, ainda prévia a entrada dos Indo-Europeus no sub-continente Indiano (Eliade, 1958).
(5) Yoga Immortality and Freedom, 1958.
(6) Segundo alguns investigadores, por exemplo Feuerstein (1998), estes ascetas do Período Védico, seriam os descendentes directos dos Xamãs, por imposição social, “convertidos” em praticantes de Tapas; que mais tarde viram a estar na origem de muitas práticas de Yoga.
(7) Haṭha Yoga, 2011a.
(8) Assistimos muitas vezes à discussão entre Chineses e Indianos sobre quem terá originado a Alquimia; os primeiros defendem a tese de que foram os seus “Imortais” a gerar aquilo que mais tarde veio a ser o Taoismo Alquímico, exportando esse conhecimento para Índia; os segundos defendem que, pelo contrário, foram os “seus” Siddha-s que criaram a Alquimia, tendo essa chegado posteriormente à China; no todo, parece tratar-se de uma mera e infrutífera discussão e tentativa de apropriação cultural mútua; o que fica claro é a clara gemelaridade entre as ideias e práticas dos Perfeitos com as dos Siddha-s, o que, por sua vez, leva a supor que algo se poderá ter originado e ou desenvolvido naquelas regiões, completamente à margem de delimitações patrióticas ou fronteiriças.
(9) Yoga Immortality and Freedom, 1958.
(10) The Alchemical Body, 1994.
(11) James Mallinson, Nāth Sampradāya, 2011b.
(12) É importante referir que muitos dos textos Tântricos versam com uma linguagem subjectiva e objectivamente alquímica, e vice-versa; algo que está patente, por exemplo, na investigação de David Gordon White (1996).
(13) Vejamos a este respeito o claro paralelismo de elementos teóricos e técnicos, entre Gnosticismo, Sufismo e Haṭha, apontado por vários autores, como por exemplo Eliade (1958).
(14) James Mallinson, The Amṛtasiddhi: Haṭhayoga’s tantric Busshist source text, 2016.
(15) Alexis Sanderson, Śaivism and the Tantric Traditions, 1988; Gavin Flood, The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion, 2006; James Mallinson, Śaktism and Haṭhayoga, 2012.
(16) Haṭha Yoga, 2011a.
(17) Os pressupostos essencialmente simples e universalista, por reacção à complexidade e elitismo do Trika, e as práticas, fundamentalmente físicas, resgatadas de Tradições Aborígenes e Ascéticas, muito anteriores no tempo.



Referências Bibliográficas:

Eliade, Mircea (1958) Yoga. Immortality and Freedom. New York. Princeton University Press.

Feuerstein, Georg (1998) The Yoga Tradition. Arizona. Hohm Press.

Flood, Gavin (2006) The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion. London & New York. I.B. Tauris.

Mallinson, James (2011a) 5,000-word Entry on “Haṭha Yoga” in the Brill Encyclopedia of Hinduism Vol. 3 (pp. 770-781). Leiden: Brill.

Mallinson, James (2011b) Nāth Sampradāya. (http://academia.edu/)

Mallinson, James (2012) Śaktism and Haṭhayoga. (http://academia.edu/)

Mallinson, James (2016) The Amṛtasiddhi: Haṭhayoga’s tantric Buddhist source text. (http://academia.edu/)

Sanderson, Alexis (1998) Śaivism and the Tantric Traditions in The World’s Religions [Ed. Sutherland, Stewart; Houlden, Leslie; Clarke, Peter; Hardy, Friedhelm]. London. Routlege.

White, David Gordon (1996). The Alchemical Body. Siddha Traditions in Medieval India. Chicado & London. The University of Chicago Press.
 
 
 (Mestiçagem Cultural no Yoga | Foto/Créditos: Yogic Identities: Tradition and Transformation)
 
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