Definição
No Yoga mudrā (“selo”) e bandha (“fecho” ou “tranca”), frequentemente emparelhados, são ambos métodos de manipular o sopro ou alento subtil que permeia o corpo, entendido como o prāṇa “individual” (1) e que se manifesta de diferentes maneiras, prāṇa vāyu-s (2), consoante função e localização:
• Prāṇa ou alento de inspiração;
• Apāna ou alento de expiração e excreção;
• Vyāna ou alento de circulação;
• Samāna ou alento de digestão;
• Udāna ou alento de ejecção.
Na prática, e genericamente, os mudrā-s podem ser gestos manuais-digitais ou posturas corporais mais complexas, cuja execução baseia numa visualização meditativa, de modo a agir sobre a regulação de Sopro Vital e Subtil. Por outras palavras, os mudrā-s selam determinados fluxos de prāṇa individual, impelindo-os a fluir numa determinada direcção ao invés de arbitrária ou alternadamente. Os bandha-s desempenhando uma função análoga, são acções “físicas” (3) que visam a concentração do Sopro Vital e Subtil em regiões específicas do corpo (os bandha-s são fechos, “bloqueiam” ou encerram o prāṇa em certas áreas). Tanto mudrā-s como bandha-s estão quase sempre associados a práticas respiratórias, o que faz sentido, tendo em conta que a respiração fisiológica se relaciona com a respiração subtil (como uma ponte).
A História dos mudrā-s e bandha-s até ao Haṭha
Apesar de tradicionalmente se ligar os mudrā-s e bandha-s ao corpus do Haṭha, a sua prática parece ser mais remota.
James Mallinson (4) descobriu que existem referências históricas, contemporâneas ao período do Buda, a ascetas que praticavam técnicas similares, por ventura até idênticas. O próprio Buda terá praticado algo semelhante ao khecarīmudrā, ao tentar impelir a língua contra o palato. Do mesmo modo, os Śramaṇa-s, grupo asceta com o qual o Buda terá confraternizado, praticariam a “Penitência do Morcego”, pendurando-se de cabeça para baixo, eventualmente pela mesma razão que posteriormente veio a fundamentar a prática de viparītakaraṇī, o selo “Inversor”. Também na Tradição Asceta Jaina, existem registos (como o Amaraughaśāsana) de praticantes que meditariam em posturas acocoradas ou de agachamento (utkaṭāsana), de maneira a exercer pressão sobre o períneo (para elevar a kuṇḍalinī), algo redolente dos posteriores mudrā-s e bandha-s do Haṭha (tai como o “grande selo”, o “grande fecho” e a “grande perfuração”).
Pelo menos, a partir do séc. VI (bem antes do Amṛtasiddhi e do Dattātreyayogaśastra, marcos fundamentais do Haṭha pré-Clássico), os mudrā-s ocorrem no espaço do Ritual Tântrico, sendo textualmente ensinados segundo variadíssimas formas e extensivamente. Porém, tirando raras excepções (5), os mudrā-s tântricos não são métodos de manipulação de energia vital, ao invés, são atitudes físicas e gestos adoptados no ritual, de maneira a despoletar certos efeitos sobrenaturais ou a fomentar a possessão pelas deidades a que estão associados – um aspecto curioso neste particular, é a asserção de que os mudrā-s das deidades também se podem manifestar espontaneamente, no praticante, aquando da possessão como resultado de outras abordagens rituais (6). O tipo de mudrā tântrico mais comum é um gesto manual ou digital, sendo os oito mudrā-s ensinados na Niśvāsattavasaṃhitā um exemplo paradigmático. Porém, à media que o Movimento Tântrico evolui, certos textos começam a ensinar mudrā-s que variam não só em número, mas fundamentalmente na forma. Por exemplo, alguns constituem-se como estados mentais (7), não necessariamente associados a práticas específicas, tal como o mahāmudrā budista, que não deve ser confundido com o mahāmudrā do Haṭha. Outros desenvolveram no sentido da técnica física, ao invés de gestos manuais ou mentais, como o caso do Jayadrathayāmala que ensina 121 mudrā-s, onde alguns são gestos digitais, mas inclui o phetkārīmudrā (“Selo do Uivador”), cuja execução implica assumir uma postura similar ao mahāmudrā do Haṭha, pressionar os punhos cerrados contra os ouvidos e “uivar” como um chacal.
Mudrā-s como elemento distintivo do Haṭha para agir sobre o Bindu ou Kuṇḍalinī
No entanto, apesar de derivar de um conjunto de práticas anteriores, como vimos, é no milieu percursor do Haṭha (a partir do séc. XI) que os mudrā-s se cimentam quanto à prática e estatuto, tornando-se um elemento distintivo desta soteriologia. Com efeito na definição e descrição sistemática mais antiga de Haṭha, o Dattātreyayogaśastra (8) do séc. XIII, é a prática de mudrā-s que distingue o Haṭha de outros métodos de Yoga.
Antes disso, o Amṛtasiddhi e o Dattātreyayogaśastra ensinam mudrā-s como meios de manipular o Alento Subtil e o bindu. O Gorakṣaśataka ensina quatro técnicas que posteriormente são chamadas de mudrā-s no quadro textual do Haṭha: mūla, uḍḍīyāna e jalāndharabandha; mais a śakicālana, ou estimulação da “língua”, para elevar a kuṇḍalinī. O Jñāneśvari ensina três fechos similares aos apresentados no Gorakṣaśataka, porém instrui o praticante a semicerrar os olhos e focar e interiorizar a fixação ocular, uma técnica semelhante à que mais tarde vem a ser denominada śāmbhavīmudrā (9) na literatura do textual do Haṭha. No Vivekamārtaṇḍa, que ensina seis dos mudrā-s presentes no Amṛtasiddhi e o Dattātreyayogaśastra, estes são inicialmente circunscritos à conservação do bindu, porém, menciona-se também a seu papel na elevação da kuṇḍalinī, abrindo um precedente que alastra aos textos que se lhe seguem: os mudrā-s passam a agir sobre a kuṇḍalinī. Com efeito, esta reconfiguração dos mudrā-s do Haṭha para se ajustarem a um paradigma Kaula Tântrico, torna-se habilmente efectivado no Kecharīvidyā e na Śivasaṃhitā. Após a codificação do Haṭha Clássico com o Haṭhapradīpikā, assiste-se a uma proliferação no ensinamento de mudrā-s, em termos de número e forma. Por exemplo, a Gheraṇḍasṃhitā ensina vinte-cinco mudrā-s, e o Jogpradīpakā vinte-quatro, nalguns casos fundindo mudrā com āsana.
Os dez mudrā-s do Haṭhapradīpikā
Até Svatmārāmā os mudrā-s e bandha-s vão variando em número, na forma e no propósito de convervar o bindu ou elevar a kuṇḍalinī. Sendo o Haṭhapradīpikā um texto que se pretende conciliador e integrador das várias visões, que até à sua redacção se dispersavam nos diferentes textos de Haṭha, seleciona um conjunto de dez mudrā-s e bandha-s que se vêm a tornar de certo modo “canónicos”, quanto à execução e na medida me que viam simultaneamente preservar o bindu e ascender a kuṇḍalinī. Esses mudrā-s são, por ordem de aparição e descrição no texto, os seguintes: Mahāmudrā; Mahābandha; Mahāvedha; Khecarīmudrā; Uḍḍīyānabandha; Mūlabandha; Jalāṇḍharabandha; Viparītakaraṇī; Vajrolīmudrā (que subsume Sahajolīmudrā e Amarolīmudrā; e Śakicālana. Há também menções indirectas e superficiais a Śambhāvīmudrā e Yonimudrā. No quadroseguinte, descreve-se sucintamente os principais mudrā-s e bandha-s apresentados no Haṭhapradīpikā.
Quadro 1 - Os dez mudrā-s do Haṭhapradīpikā
Como vimos, no Haṭha pós-Clássico, a evolução e proliferação de mudrā-s acentua-se e, grosso, modo associa-se à prática de āsana. Actualmente, naquilo a que podemos chamar o Yoga Postural Moderno, a prática de mudrā-s é tão ou mais importante consoante a Tradição em causa. Normalmente, há duas formas de abordagem dominantes: a que promove a activação voluntária de mudrā-s e bandha-s durante a prática de āsana e prāṇāyāma, como é o exemplo do Aṣṭāṅga Vinyāsa; e a que defende que se deve chegar involuntariamente à activação de mudrā-s e bandha-s, através do alinhamento postural, tanto em āsana como em prāṇāyāma, como é o caso do “estilo” desenvolvido por B.K.S Iyengar. A saber-se qualquer uma destas abordagens, tem a sua origem em textos de Haṭha Medieval e Clássico.
Joel Machado
Notas
(1) O prāṇaserá universal, um todo que tudo permeia, à imagem da definição de “Éter”na Grécia Clássica. Portanto, só para ajudar a entender estes processos, se utiliza a expressão “prāṇaindividual”.
(2) Ou cinco upadoṣa-s, sub-funções de vāta,um dos três humores biológicos.
(3) As aspas aqui surgem porque, frequentemente, os textos de Haṭha, e não só, afirmam que a partir de determinado ponto de prática, estas acções deixam de ser provocadas e passam a ser espontâneas, a um nível subtil e não tanto físico.
(4) The Khecarīvidyā of Ādinātha, 2007.
(5) Mallinson e Singleton (2017) identificam este aspecto mencionado, os karaṇa-s, um método de yoga presente em alguns tetos tântricos que, ao que parece, se assemelha na prática e objectivo aos mudrā-s e bandha-s.
(6) Dentro da Tradição Tântrica a análise do processo de possessão é configurada de acordo com diferentes níveis de sofisticação. Assim, por exemplo, ao khecarīmudrātântrico (cujos vários métodos de prática são diferentes dos apresentados nos textosde Haṭha) atribui-se a capacidade de veicular a possessão por parte de Yoginī-s “errantes do céu”, conhecidas como as Khecarī-s, ou a experiência directa da consciência Khecarī, o estado mental mais elevado.
(7) Uma noção de mudrāque persistiu em algumas tradições posteriores, como por exemplo, os AṣṭaMudrāou “Oito Mudrā-s” atribuídos a Goraknāth.
(8) O Dattātreyayogaśastraé o produto de uma tradição de ascetas não-tântricos e celibatários, onde estas técnicas asseguravam a abstinência sexual (conservação do bindu), o que nos mitos indianos e soteriologias afins sempre foi a chave para o poder ascético.
(9) Esta técnica é frequentemente encontrada em trabalhos Śaiva, sob o nome de Bhairavamudrā, ao contrário dos mudrā-s mais físicos.
(2) Ou cinco upadoṣa-s, sub-funções de vāta,um dos três humores biológicos.
(3) As aspas aqui surgem porque, frequentemente, os textos de Haṭha, e não só, afirmam que a partir de determinado ponto de prática, estas acções deixam de ser provocadas e passam a ser espontâneas, a um nível subtil e não tanto físico.
(4) The Khecarīvidyā of Ādinātha, 2007.
(5) Mallinson e Singleton (2017) identificam este aspecto mencionado, os karaṇa-s, um método de yoga presente em alguns tetos tântricos que, ao que parece, se assemelha na prática e objectivo aos mudrā-s e bandha-s.
(6) Dentro da Tradição Tântrica a análise do processo de possessão é configurada de acordo com diferentes níveis de sofisticação. Assim, por exemplo, ao khecarīmudrātântrico (cujos vários métodos de prática são diferentes dos apresentados nos textosde Haṭha) atribui-se a capacidade de veicular a possessão por parte de Yoginī-s “errantes do céu”, conhecidas como as Khecarī-s, ou a experiência directa da consciência Khecarī, o estado mental mais elevado.
(7) Uma noção de mudrāque persistiu em algumas tradições posteriores, como por exemplo, os AṣṭaMudrāou “Oito Mudrā-s” atribuídos a Goraknāth.
(8) O Dattātreyayogaśastraé o produto de uma tradição de ascetas não-tântricos e celibatários, onde estas técnicas asseguravam a abstinência sexual (conservação do bindu), o que nos mitos indianos e soteriologias afins sempre foi a chave para o poder ascético.
(9) Esta técnica é frequentemente encontrada em trabalhos Śaiva, sob o nome de Bhairavamudrā, ao contrário dos mudrā-s mais físicos.
Bibliografia
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Mallinson, James (2011)5,000-word Entry on “Haṭha Yoga” in the Brill Encyclopedia of HinduismVol. 3 (pp. 770-781). Leiden: Brill.
Mallinson, James & Singleton, Mark [Trad. e Ed.] (2017) Roots of Yoga. London. Pinguin Clássics.
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