Segundo, Feuerstein (1), depois do Haṭhapradīpikā e da Gheraṇḍasaṃhitā, a Śivasaṃhitā (“Colecção de Śiva”) é tida como o mais importante manual de Haṭha – opinião que foi relativamente unânime, desde Mircea Eliade (2) até ao final do séc. XX e começo do novo Milénio. Feuerstein refere que a data de composição será desconhecida, parecendo ser um trabalho do final do séc. XVII ou início do século XVIII.
Já James Mallinson (3), defende que o tratado será anterior ao Haṭhapradīpikā, datando do período entre 1300 a 1500 d.C., afirmando ainda que terá sido composto na zona de Vārāṇasī, devido à análise de elementos contidos no texto (4). Parece ser um texto de influência Vedānta, porém apresentada num esquema Śaiva, ou redigido para “encaixar” nesse esquema (5). Com efeito, não há nada na Śivasaṃhitā que a associe aos Nāth-s, tradicionalmente patronos do Haṭha. Pelo contrário, vários elementos textuais mostram que será um produto da tradição Śaiva, não-dualista, miscigenada ao culto Kaula Dakṣiṇāmnāya de Tripurasundarī, expurgado e conhecido como Śrīvidyā – por sinal, o culto que mais proliferou e perdurou de entre as tradições Śākta. Esta orientação Śākta da Śivasaṃhitā ficará clara no final dos ensinamentos sobre os benefícios associados à repetição do Śrīvidyā mantrarāja.
A Śivasaṃhitā menciona utiliza o termo “haṭha” para se referir a um “tipo” de Yoga, mas não propõe uma definição. Ademais, apesar de mencionar o mahāmudrā, manhābandha e mahāvedha (do Amṛtasiddhi), nunca se fala em Bindu, provavelmente devido à tal agenda Śaiva e Śakta – até o vajrolī é convertido a um esquema Śākta, servindo para o praticante absorver os fluidos sexuais do(a) parceiro(a) – ou seja combinar bindu (“sémen”) e rajas (“fluídos uterinos” ou “vaginais”).
Estrutura e Conteúdo
A Śivasaṃhitā, cuja autoria se desconhece, é um diálogo entre Śiva e a sua esposa Pārvatī e, declarando-se um texto de Yoga, assume-se também como um tantra. Dependendo da versão, segundo Feurstein (6) compreende cerca de 645 (7) estrofes distribuídas ao longo de cinco capítulos (paṭala-s). Esta escritura é particularmente valiosa porque inclui uma considerável quantidade de ensinamentos filosóficos, algo “incomum” no acervo de textos de Haṭha.
Afirmando que o Yoga é a via mais elevada, o primeiro capítulo é integralmente consagrado a expor o não-dualismo vedântico, porém, e segundo James Mallinson (8), num estilo e formato do Śrīvidyā Tantra.
एकं ज्ञानं नित्यमाद्यन्तशून्यं नान्यत् किञ्चिद्वत्ते ते वस्तु सत्यम्। यद्भेदोस्मिन्निन्द्रियोपाधिना वै ज्ञानस्यायं भासते नान्यथैव॥ १॥
ekaṁ jñānaṁ nityamādyantaśūnyaṁ nānyat kiñcidvatte te vastu satyam | yadbhedosminnindriyopādhinā vai jñānasyāyaṁ bhāsate nānyathaiva || 1 ||
1 - [O Senhor disse]: Jñāna (conhecimento transcendental) por si só é eterno; é sem começo e sem fim; nenhum outro (similar) existe. As diversidades que vemos no mundo são resultados, apenas, de condições sensoriais que afetam este Jñāna. (9)
O segundo capítulo avança com a descrição de algumas das estruturas esotéricas do corpo humano, por outras palavras, descreve o modo como macro fenómenos externos e observáveis são internalizados, possuindo duplos ou equivalentes dentro do corpo “individual”, e como o mundo exterior está dentro desse mesmo corpo sob a forma de nāḍi-s (rios, canais), fogo, Jīva, entre outros elementos.
देहेऽस्मिन्वर्तते मेरुः सप्तद्वीपसमन्वितः। सरितः सागराः शैलाः क्षेत्राणि क्षेत्रपालकाः ॥ १॥
dehe'sminvartate meruḥ saptadvīpasamanvitaḥ | saritaḥ sāgarāḥ śailāḥ kṣetrāṇi kṣetrapālakāḥ || 1 ||
1- Neste corpo está o meru (a coluna vertebral) conectada com sete ilhas. Além disso, existem rios, oceanos, montanhas, reinos e governantes.
ऋषयो मुनयः सर्वे नक्षत्राणि ग्रहास्तथा। पुण्यतीर्थानि पीठानि वर्तन्ते पीठदेवताः ॥ २॥
ṛṣayo munayaḥ sarve nakṣatrāṇi grahāstathā | puṇyatīrthāni pīṭhāni vartante pīṭhadevatāḥ || 2 ||
2- Há videntes, sábios, todas as estrêlas e planetas, locais sagrados, santuários com suas divindades regentes.
सृष्टिसंहारकर्तारौ भ्रमन्तौ शशिभास्करौ। नभो वायुश्च वह्निश्च जलं पृथ्वी तथैव च ॥ ३॥
sṛṣṭisaṁhārakartārau bhramantau śaśibhāskarau | nabho vāyuśca vahniśca jalaṁ pṛthvī tathaiva ca || 3 ||
3- O sol e a lua, o criador e o destruidor, movem-se neste corpo. Há também éter, ar, fogo, água e terra.
त्रैलोक्ये यानि भूतानि तानि सर्वाणि देहतः। मेरुं संवेष्ट्य सर्वत्र व्यवहारः प्रवर्तते ॥ ४॥
trailokye yāni bhūtāni tāni sarvāṇi dehataḥ | meruṁ saṁveṣṭya sarvatra vyavahāraḥ pravartate || 4 ||
4- Todos os seres que existem nos três mundos também podem ser encontrados no corpo, e estão envolvidos em suas respectivas funções em torno do Meru.
जानाति यः सर्वमिदं स योगी नात्र संशयः ॥ ५॥
jānāti yaḥ sarvamidaṁ sa yogī nātra saṁśayaḥ || 5 ||
5- Aquele que sabe tudo sobre isso é certamente um yogin; sem duvidas. (10)
O terceiro capítulo abre uma discussão sobre a importância e qualificações do professor (guru) e estudante, avança com as técnicas de respiração (Prāṇāyāma), e apresenta três níveis de realização yoguica: (1) ghatāvastahā, o “estado do pote”, em que a força vital presente no corpo (o “pote”) colabora com o Self Universal; (2) paricayāvasthā, o “estado de acumulação”, em que a força vital é imobilizada ao longo do eixo axial do corpo, Suṣumṇā; e (3) Niṣpattiāvasthā, o estado da maturação”, em que o yogī destruiu as sementes do seu karma e “bebe das águas da imortalidade”. Expõe também as suas várias teorias fisiológicas, incluindo os cinco elementos constituintes do corpo e um corpo de āsana-s (“posturas”) - nomeia 84 āsana-s diferentes, mas só descreve detalhadamente quatro.
No quarto capítulo descrevem-se os vários bandha-s (“fechos”) e mudrā-s (“selos”) para o despertar da kuṇḍalinī, bem como os estados na prática de yoga que podem levar a siddhi-s (poderes) e ao despertar da kuṇḍalinī.
O quinto capítulo, o mais extenso, é um tratamento aos obstáculos à via do Yoga, seguido de uma discussão acerca dos cakra-s (centros secretos do corpo), com especial enfoque ao Sahasrāra (centro da coroa), e ao mais elevado estado de Yoga. Apresenta energias (vāyu-s) e sons internos, e mantra. O texto menciona também os tipos de estudantes, afirmando que até chefes-de-família, podem obter a libertação, desde que observem os deveres do yogī com diligência e desistam de todos os apegos, deste modo, discutindo os entraves a Libertação.
Joel Machado
Notas:
(1) The Yoga Tradition, 1998.
(2) Yoga, Immortality anda Freedom, 1958.
(3) The Shiva Samhita: A Critical Edition, 2007;
(4) vide a introdução da sua tradução comentada à Śivasaṃhitā: "The Shiva Samhita: A Critical Edition, 2007".
(5) James Mallinson, Śāktism and Haṭhayoga, 2016.
(6) The Yoga Tradition, 1998.
(7) Número este que varia; por exemplo, Pedro Kupfer, na sua tradução ao primeiro capítulo (in http://www.shri-yoga-devi.org/textos/Shiva-Samhita-port.pdf) menciona 540 estrofes.
(8) Śāktism and Haṭhayoga, 2016.
(9) Tradução de https://mokshadharma.blogspot.com/2019/04/l-dissolucao_30.html
(10) Tradução de https://mokshadharma.blogspot.com/2019/04/ll-realidade_30.html
Bibliografia
Eliade, Mircea (1958) Yoga, Immortality and Freedom. New York. Princeton University Press.
Feuerstein, Georg (1998). The Yoga Tradition. Its History, Literature, Philosophy and Practice. Chino Valley, Arizona. Hohm Press.
Mallinson, James (2007) [Trad. & Coment.] "The Shiva Samhita. Woodstock, United States. Yoga Vidya.
Mallinson, James (2011) “The Original Gorakṣaśataka,” pp. 257–272 in Yoga in Practice, ed. David Gordon White. Princeton: Princeton University Press.
Mallinson, James (2014) 'Haṭhayoga's Philosophy: A Fortuitous Union of Non-Dualities.' Journal of Indian Philosophy, 42 (1). pp. 225-247.
Mallinson, James (2016) “Śāktism and Haṭhayoga,” in Goddess Traditions in Tantric Hinduism, History, Practice and Doctrine,, Edited by Bjarne Wernicke Olesen, 109-140. Oxford: Routledge.
(Prática de āsana representada numa Ilustração do Joga Pradīpikā | Foto/Créditos: Eighty-Four Asanas in Yoga: A Survey of Traditions)
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