Durante milénios Religião, Filosofia e Ciência integravam-se num só corpo. Foi assim no Antigo Próximo Oriente, onde os Sumérios aliaram o estudo da astronomia à astrologia. Na Antiguidade Clássica, entre Gregos os homens de saber eram tradicionalmente metafísicos, filósofos, matemáticos e proto-cientistas. Já os Romanos, movidos pela cultura militarizada trouxeram enormes avanços na Engenharia. No Período medieval, sobretudo na Europa Ocidental, há um declínio enorme do saber, tendo a institucionalização do Cristianismo contribuído para tal. Em todo o caso, é neste período que abrem as primeiras universidades europeias. A partir do Renascimento, o panorama muda e do Iluminismo ao séc. XIX, com o cunho formal do Método Científico, há uma inversão: a “religião” dominante passa a ser a Ciência Experimental, juntamente com o Capital, até à actualidade.
Simultaneamente a este percurso da Ciência Experimental, Xamanismo, Ascetismo, Alquimia, Yoga, Gnoses, Místicas, várias foram também as manifestações de Ciência Contemplativa ao longo de milénios, conforme período histórico e momento sócio-cultural.
De um modo ou de outro a relação entre Ciência Contemplativa e Ciência Experimental foi pendendo numa balança de forma diferente. Em alguns momentos as culturas e sociedades privilegiaram uma em detrimento de outra. Isso foi dependendo de interesses nas cúpulas detentoras de poder, como sempre tem acontecido. Na Idade Média, na Europa, sendo o Clero o poder dominante, a Religião Católica institucionalizada dominou, ditando os caminhos. Porém, fê-lo predominantemente dissociada da Ciência Contemplativa “pura” que deveria ser. A partir do séc. XIX (Revolução Industrial) e com pináculo na segunda metade do séc. XX, a Ciência Experimental tornou-se a nova “religião institucionalizada”. Uma ironia do destino, como se costuma dizer, se tivermos em consideração a brutal perseguição que a Religião dedicou aos círculos científicos, durante séculos. A situação deteriorou nas duas décadas do Novo Milénio, sob o efeito do Neoliberalismo, com um pesado preço: uma certa descredibilização da investigação e literatura científicas pela suspeição de estar “comprada” ou “encomendada” para servir interesses económicos e ideológicos. O mesmo ocorre, genericamente, para Ciências Contemplativas como o Yoga ou Xamanismo que, tendo sido capturadas pelas “garras” do culto ao lucro, se tornaram mais indústrias de entretenimento e estimulação do ego.
Feita a resenha histórica e traçado o cenário actual, qual deveria ser a tónica da relação entre Ciência Contemplativa e Ciência Experimental? Complementaridade, parece-nos. Ambas deveriam complementar-se dentro do bom senso e na medida do possível. Reconhecendo as diferenças que as particularizam, e aceitando-as, ao invés de fazer delas focos de rejeição ou de conveniência, procurar a harmonia. Concretamente, trata-se de ir além do preconceito, por um lado, e do oportunismo, por outro.
No que toca ao preconceito, entre cientistas ainda há um tabu enorme face à Ciência Contemplativa. Não fosse o interesse entre académicos que Budismo granjeou nas duas últimas décadas, essencialmente pela sua natureza agnóstica, estaríamos ao nível da estaca zero, tirando raras excepções. Seja como for, ainda hoje é extremamente complicado conseguir por exemplo financiamento para estudos académicos que foquem questões relacionadas com contemplação e espiritualidade. Há uma tendência quase reflexa da generalidade dos cientistas em negar ou atacar tudo o que tenha a ver com contemplação, frequentemente ridicularizando. Diríamos que isso terá a ver com um problema de percepção de controlo e dificuldade em gerir a questão da subjectividade. Uma das ilusões que a sacralização da Ciência Experimental inocula no ego é a de que “sabemos tudo”, de que o universo interior e ao redor está de algum modo “explicado”, logo controlado. Ora, se a subjectividade entrar, virá consequentemente a ausência de controlo, porque ou não se traçam limites ou esses ocorrem diáfanos e incertos.
Este preconceito também pode ocorrer no sentido inverso. Alguns contemplativos desmerecem e negligenciam o conhecimento granjeado através da Ciência Experimental por convicção ou porque de algum modo coloca em causa as crenças que alimentam dentro da sua esfera de controlo. Aqui a relação com a percepção de controlo, inverte-se. Há um aproveitamento da subjectividade para explicar tudo, ter resposta a tudo. Desconfiemos sempre dos guru-s e professores que têm resposta para tudo.
No que toca ao oportunismo, entre (pseudo)contemplativos há uma frequente relação de interesse circunstancial na Ciência Experimental, que pode ir de caricatural a desonesta e fundamentalmente só descredibiliza a Ciência Contemplativa. Caricatural quando nos deparamos com sincretismos mirabolantes que alguns vão buscar para tentar legitimar ou engrandecer a sua ideologia ou prática contemplativa. Um exemplo paradigmático é a utilização da Mecânica Quântica para explicar virtualmente tudo. A este respeito, parece não adiantar que Físicos, naturalmente abalizados na matéria, venham explicar que os pontos comuns entre Metafísicas do Yoga e Física Quântica sejam altamente discutíveis, actualmente, sendo preciso um tremendo esforço de extrapolação ou de imaginação para afirmar o contrário. Desonesto quando se recorre a expedientes corruptos para tentar proteger a sua galinha dos ovos de ouro. É frequente ver professores de Yoga Postural Moderno alegaram validação científica da prática actual de āsana quando, até ver, essa praticamente não existe. Nem no domínio do prāṇāyāma, onde já há alguma investigação, se podem alegar conclusões de monta. Outro exemplo comum ocorre com os cakra-s, já que é frequente afirmarem-se estudos científicos na sua legitimação quando não existem. A questão é linear: dada a importância que a Ciência Experimental ganhou na sociedade global, é comum entre quem lucra com Ciências Contemplativas procurar validação científica. Daí talvez se abre a tentação de incorrer na extrapolação abusiva ou mesmo na desonestidade.
Posto isto, coloca-se a questão: será a Validação Científica das ciências Contemplativas, como o Yoga, uma necessidade? Até onde for possível, diríamos que sim. A partir de certa medida, quando se sai do âmbito de uma para entrar no espaço de outra, deixa de fazer sentido, pelo que diríamos que não. Cada uma terá o seu foco. Logo, o ideal será cingirmo-nos aos pontos de intersecção em detrimento de procurar uma sobreposição descabida que depois fomenta desconfiança e, ulteriormente, rejeição. Há inúmeros estudos científicos sobre a prática de meditação, é verdade. Porém, merecem ser enquadrados de acordo com o valor relativo que cada investigação científica detém. Nem engrandecido, nem desvalorizado, conforme convenha ao ego ou à conta bancária. Façamos, então, um apelo ao bom senso e à coerência.
As Ciências Contemplativa e Experimental devem complementar-se, como dois bailarinos perfeitamente entrosados numa dança de subjectividade-objectividade. A primeira terá como objecto a experiência da consciência, de modo genérico e sem dogma, a segunda visa estudar o mundo fenomenológico, material, abdicando do receio à subjectividade. Onde se puderem encontrar, que se colham os dividendos. Onde se desencontrarem, não se faça disso celeuma, seja como for. Subjetividade e objectividade não deveriam ser vistas como virtude e defeito, ou vice-versa, antes, harmonizadas. Como refere B. Alan Wallace em Contemplative Science. Where Buddhism and Neuroscience Converge, religião, filosofia e ciência deveriam convergir (não necessariamente fundir) no intuito de alcançar felicidade, verdade e virtude. Partilhamos de tal aspiração, portanto, que o bem-estar psicológico, social, ambiental e espiritual venha dessa união, sóbria, entre o que o ser humano pode alcançar (ou recuperar) através das Ciências Contemplativas e Experimentais.
Joel Machado
(Foto/Créditos: Brian Ulrich)
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